Em São Luís, capital do Maranhão, consumidores enfrentam mais do que simples falhas na hora de pagar as compras. Episódios recorrentes de divergência de preços entre prateleiras e caixas nos supermercados revelam um problema mais profundo: o descumprimento sistemático da legislação de defesa do consumidor e a falta de comunicação clara sobre direitos que ainda estão válidos.
Foi o que aconteceu com o advogado José David, de 48 anos, no dia 8 de junho de 2025. Durante uma compra em uma unidade do Mix Mateus, ele identificou diferença entre o valor exibido na prateleira e o que apareceu no terminal de consulta. Apoiado no que acreditava ser um termo de cooperação ainda válido entre o Procon (Instituto de Promoção e Defesa do Cidadão e Consumidor) do Maranhão e a Amasp (Associação Maranhense de Supermercados), pegou uma unidade adicional do produto, esperando ter direito à gratuidade da segunda peça.
O que ele não sabia é que o termo havia perdido a validade uma semana antes, em 1º de junho. O supermercado negou o benefício, mas sem informar sobre o fim da regra. O episódio evidenciou não só a ausência de comunicação do poder público sobre a revogação do termo, mas também a omissão do Grupo Mateus em informar o fim de uma política estabelecida. O caso se soma a uma série de relatos que apontam indícios de comportamento padronizado de desinformação, resistência ao cumprimento da legislação e constrangimento de clientes em supermercados da cidade.


O QUE DIZ A LEGISLAÇÃO E O ACORDO
Criado em 2015, o termo de cooperação entre o Procon-MA e a Amasp fazia parte da campanha “Consumidor Fiscal” e determinava que, em casos de produtos com validade vencida ou divergência de preços entre prateleira e caixa, o consumidor teria direito a receber gratuitamente outro produto idêntico. A regra foi mantida por dez anos e visava ampliar os mecanismos de proteção além do previsto na Lei 8.078/1990, conhecida como CDC (Código de Defesa do Consumidor).
Com o fim da validade do termo, em 1º de junho de 2025, os supermercados voltaram a ser submetidos exclusivamente às regras do CDC e da Lei nº 10.962/2004. Essas normas asseguram ao consumidor o direito de pagar o menor valor anunciado, mas não garantem a entrega gratuita de um segundo item em caso de erro.
A mudança, no entanto, não foi comunicada publicamente. O próprio Procon maranhense, além de não ter realizado campanha ampla de esclarecimento, mantém em seu site uma propaganda sobre o acordo. Os supermercados também não afixaram avisos em suas lojas sobre o fim da regra. Resultado: consumidores passam a enfrentar resistência e desencontro de informação sobre seus direitos básicos.

DESCUMPRIMENTO DA LEI E DO TERMO, MESMO DURANTE A VALIDADE
A reportagem apurou situações em que os direitos previstos no termo foram negados mesmo quando ainda válidos. Entre os relatos, há casos em que consumidores precisaram insistir para garantir o pagamento do menor preço. Em outros, a gratuidade prevista no acordo foi simplesmente ignorada e a compra, cancelada.
Nas redes sociais e em plataformas como o Reclame Aqui, é possível encontrar diversos relatos semelhantes envolvendo unidades do Mateus Supermercados. A falha na precificação e o desrespeito ao que estabelece a lei ou o próprio acordo firmado entre o Procon-MA e a Amasp se repetem, fazendo consumidores desistirem de compras ou pagarem valores incorretos.
Pedro Pereira, de 27 anos, conta que já enfrentou mais de uma situação de divergência de preço no Mix Mateus. Em todos os casos ele levou o produto pelo menor valor, alegando conhecimento do Código do Consumidor. No entanto, revelou que só tomou conhecimento do que dizia o acordo quando o Atual7 realizou a entrevista, pois o estabelecimento não informava sobre a lei estabelecida na cláusula 3 do termo de cooperação, que garantia outro produto idêntico de forma gratuita.
Adriadna Vilaça, 30, também afirma que nunca foi informada sobre a possibilidade de levar um segundo produto gratuitamente. A consumidora afirma que sempre aplicou a regra do produto pelo menor valor, mas que soube da regra do produto gratuito apenas quando a reportagem entrou em contato com ela.
O professor universitário Alexandre Gouveia desistiu de diversas compras devido aos constrangimentos causados por essas situações. Segundo ele, uma divergência de preços ocorreu com um produto da seção de frios que estava em promoção. Ao chegar ao caixa, o valor registrado era cerca de R$ 5 a mais do que o anunciado.
“Comentei que o produto estava em promoção, e a funcionária me perguntou se eu poderia buscar para comprovar. Eu disse que não tinha como sair da fila e pedi que alguém da loja verificasse. Como não mandaram ninguém, pedi o cancelamento da compra. Não levei os produtos porque o valor estava errado e eles não quiseram conferir. Também já aconteceu de passarem o mesmo produto duas vezes. Então, sempre que estou com alguém, peço que fique de olho no visor enquanto coloco as compras na esteira. A gente tem que vigiar o tempo todo”, relata.
Gouveia afirma que episódios como esses se repetem com frequência nas unidades da rede.
Na plataforma Reclame Aqui, os casos relatados vão de cobranças indevidas a falhas reincidentes na precificação.
















Para o presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da Seccional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) no Maranhão, Rosinaldo Mendes, essa prática revela um problema sistemático. “O Código do Consumidor é uma das legislações mais avançadas do mundo, mas muitos consumidores deixam de buscar seus direitos por causa do baixo valor econômico do produto. A compra pode parecer pequena, como um shampoo ou uma margarina, mas o direito violado é grande. E quando o consumidor deixa de reclamar, ele enfraquece a fiscalização e contribui para a repetição do problema”, afirmou.
A criação do termo de cooperação com a Amasp, segundo Mendes, foi uma tentativa da autarquia estadual de ampliar a proteção do consumidor diante de falhas frequentes em supermercados maranhenses, inicialmente na rede de supermercados do Grupo Mateus. “Na época, o Mateus tinha muitos problemas: produtos vencidos, preços divergentes. A iniciativa surgiu a partir do ex-presidente do Procon, Duarte Júnior, para criar uma compensação ao consumidor. Com o tempo, foi ampliada para outras redes. Mas o que vemos é que, mesmo com o termo válido, ele era frequentemente ignorado dentro das lojas”, disse.
POSICIONAMENTO DO PROCON
O Atual7 enviou cinco perguntas específicas ao Instituto de Promoção e Defesa do Cidadão e Consumidor do Maranhão sobre os motivos para o não-renovação do acordo, dados de reclamações, avaliação do cumprimento pelos supermercados, fiscalização atual e perspectivas futuras.
Em nota, o Procon-MA alegou que a renovação do termo de cooperação com a Amasp está em tratativas, ainda não concluídas. Sobre o período de validade (2015–2025), a avaliação foi genérica: “Observou-se uma crescente conscientização dos consumidores em relação aos seus direitos. Houve avanços por parte dos estabelecimentos, que passaram a adotar medidas de controle interno mais eficientes para garantir melhorias no atendimento ao consumidor.”

Questionado especificamente sobre o volume de reclamações, o órgão revelou, sem indicar quais outras redes, que, apenas no caso dos supermercados Mateus, foram registradas 99 denúncias por divergência de preços nos últimos 12 meses, liderando as reclamações.
O Procon-MA disse ainda, sem detalhar, que as fiscalizações seguem sendo realizadas mesmo com o fim do termo de cooperação, e que irregularidades continuam sendo alvo de autuações. “A ausência de preço nas gôndolas, divergências de valores entre a prateleira e o caixa, e o descumprimento das normas de segurança e saúde continuam sendo alvos das ações de fiscalização, que resultam na lavratura de autos de infração e podem gerar penalidades que variam de multas à suspensão das atividades dos estabelecimentos”, informou.
“Independentemente de termos adicionais como esse, o direito ao menor preço e à troca do produto já está garantido no Código de Defesa do Consumidor e na Lei nº 10.962/2004. O consumidor deve sempre exigir que esses direitos sejam respeitados”, reforçou.
O órgão não respondeu diretamente sobre penalizações aplicadas durante a validade do termo nem sobre previsão de mudanças em um possível novo acordo.
OUTRO LADO
O Atual7 buscou o posicionamento do Grupo Mateus, em mensagem enviada à assessoria da rede de supermercados. O contato foi feito no dia 17 de junho. Foram enviadas perguntas sobre os casos relatados, o cumprimento do termo e os procedimentos adotados para informar os consumidores sobre o fim da regra. Mais de duas semanas depois, nenhuma resposta foi enviada.
O QUE DIZIA O TERMO DE COOPERAÇÃO (AGORA ENCERRADO)
O termo de cooperação firmado entre o Procon-MA e a Amasp, em junho de 2015, que integrava a campanha Consumidor Fiscal, garantia ao consumidor o recebimento gratuito de um produto idêntico caso, nas compras realizadas no varejo, encontrasse outro com data de validade vencida ou com preço divergente.
A regra não se aplicava, porém, a produtos das seções de eletroeletrônicos, automotivos, móveis, bicicletas, produtos de cama, mesa e banho, bem como plásticos em geral, brinquedos, produtos de escritório/material escolar, inox e assemelhados, além de outros produtos que por sua natureza não possuem data de validade nas embalagens ou etiquetas. Nesses casos, segundo a cláusula 3, item 5 do acordo, o consumidor tinha direito apenas ao menor valor ofertado pelo produto.
A validade do termo foi encerrada oficialmente em 1º de junho de 2025.
COMO AGIR DIANTE DE IRREGULARIDADES
Em casos de divergência de preços ou recusa de cumprimento da legislação, o consumidor deve:
- Fotografar os preços na prateleira e no terminal de consulta
- Registrar reclamação no Procon e no site consumidor.gov.br
- Procurar a Justiça em casos de dano individual
- Considerar ações coletivas para violações recorrentes
Segundo presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB do Maranhão, o volume de denúncias ajuda a identificar estabelecimentos problemáticos. Por isso, cada reclamação é importante.
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