“A gente ficou besta quando simplesmente soube, pela imprensa, que o circo ia ser desativado.” A lembrança é da atriz, dançarina e narradora Rosa Ewerton Jara, que em 2012 viu o Circo Cultural Nelson Brito ser desmontado. O então prefeito João Castelo alegou, às vésperas das eleições municipais daquele ano, que o espaço seria ocupado por um VLT (Veículo Leve sobre Trilhos). Comprado por R$ 7 milhões, o veículo nunca funcionou efetivamente, chegando a circular apenas no teste de tráfego em um pequeno trecho da linha de 800 metros. A cidade ficou sem o circo e sem o VLT.
Treze anos depois, o circo segue fora do mapa cultural da cidade. Neste período, três gestões municipais prometeram reativar o espaço, duas de Edivaldo Holanda Júnior (2013-2020) e uma de Eduardo Braide (2021-2024, reeleito em 2024). Nenhuma cumpriu.

Inaugurado pela gestão Jackson Lago em março de 1999 no Aterro do Bacanga, ao lado do Terminal de Integração Praia Grande, o equipamento que ficou conhecido como Circo da Cidade era um espaço cultural de baixo custo operacional e alto impacto. Funcionava com uma estrutura simples: uma lona sobre área pública e uma pequena equipe de manutenção. A localização estratégica, próxima ao terminal que até hoje atende toda a cidade, facilitava o acesso do público. Em 2009, pela Lei 5.084, passou a se chamar oficialmente Circo Cultural Nelson Brito, em homenagem ao artista maranhense falecido pouco tempo antes.
“Era um espaço fascinante”, lembra o produtor cultural e músico Beto Ehongue, que frequentava o local antes mesmo de ser atuante na cena cultura como artista. “Foi muita coisa interessante: shows nacionais, shows internacionais. Ele era relativamente baratíssimo, não tinha muitos custos que justificassem a saída do circo cultural da cidade”, recorda.
O equipamento sediou apresentações de artistas como Ângela Ro Ro, Tom Zé, Jards Macalé, Chico César, Paulinho Moska, Lobão, Raimundo Sodré, Elomar, Xangai e Vander Lee. Em 2002, foi palco do Festival de Música Internacional de São Luís, que trouxe uma orquestra da Grécia e artistas norte-americanos.
Na programação local, o circo abrigava estreias de espetáculos teatrais, shows de bandas iniciantes, oficinas culturais. O ator-mímico, palhaço e teatro-educador Gilson César relembra que ali aconteciam eventos como Uma Linda Quase Mulher e a Virada da Palhaçada, encontro de palhaços que acampava no espaço por dois dias, e o Baile Infantil da Chupeta, com concurso de fantasias. “Ali era um espaço que praticamente a semana toda tinha espetáculo. Era um ponto de apoio, de valorização de iniciativa de quem estava estreando, de quem estava começando o projeto, porque ali tinha um público certo”, enfatiza.
Para Rosa Ewerton, o circo representava um sonho realizado. “Era um lugar que a gente já reivindicava há muito tempo. Realizava muita coisa lá. O circo estava o tempo todo funcionando, sempre teve atividade”, destaca.
DESMONTE E MOBILIZAÇÃO
A desativação gerou protestos imediatos. “A gente ficou atônito. Fez movimento, fez um monte de coisa”, relata Rosa. Desde 2012, artistas e coletivos culturais realizam manifestações cobrando o retorno do equipamento.
“Eu considero a retirada do circo da cidade como uma das grandes aberrações políticas de São Luís”, afirma Beto Ehongue. “Tiraram o circo, a cidade ficou sem o circo, sem o VLT. E o que torna ainda mais bizarro é que São Luís é uma cidade patrimônio histórico da humanidade, que tem um retrospecto ancestral de cultura, mas é carente de espaço”, denuncia.
Durante as duas gestões de Edivaldo Holanda Júnior (2013-2020), a promessa de reconstrução do Circo da Cidade foi recorrente. No final do primeiro mandato, candidato à reeleição, o ex-prefeito chegou a apresentar uma maquete de um projeto arquitetônico ambicioso. A estrutura prometida teria lona tensionada, palco moderno, capacidade para 500 pessoas sentadas, arquibancadas empilháveis, banheiros, escritório e bilheteria.
“O prefeito da época chegou com uma maquete virtual, um projeto, de um circo ‘Uau!’, todo Oscar Niemeyer, aquela coisa enorme e bonita”, relata Rosa. “Mas a gente não gostou. Porque não era isso que a gente queria. O circo era aquilo que a gente tinha e daquele jeito ele funcionava super bem”, explica.
A classe artística foi convocada para conhecer o projeto, mas nada saiu do papel. “Ficamos um tempão cobrando, entra ano e sai ano e nada. Enrolação atrás de enrolação”, desabafa Rosa.

“Esses protestos de resgate do circo cultural vêm desde o primeiro ano que ele saiu. Desde 2012, várias manifestações vêm sendo feitas em todos esses governos”, contextualiza Beto.
O Atual7 tentou contato por telefone e WhatsApp com o ex-prefeito Edivaldo Holanda Júnior entre a última quarta-feira (15) e esta terça (21), mas não obteve resposta.
PROCESSO IRREGULAR
A reativação do Circo da Cidade esteve presente nos planos de governo das duas campanhas eleitorais de Eduardo Braide (PSD) ao Palácio de La Ravardière, com o equipamento rebatizado como Circo-Escola Nelson Brito. Em setembro do ano passado, durante entrevista à TV Mirante no primeiro turno da eleição, Braide afirmou que a licitação para a obra “já foi autorizada para a construção” e que o circo seria instalado em “um lugar que tem muito verde”, sem revelar exatamente onde.
Documentos oficiais obtidos pelo Atual7 mostram, no entanto, que o processo administrativo para contratar a elaboração dos projetos técnicos (não a obra) só foi aberto em abril de 2025, sete meses após a declaração do prefeito. O processo SEI (Sistema Eletrônico de Informações) nº 33101.000194/2025, da Secretaria Municipal de Inovação, Sustentabilidade e Projetos Especiais (Semispe), previa prazos de julho a outubro de 2025 para a conclusão dos projetos. Esses prazos já estão vencidos.
Os documentos revelam também que o local onde o Circo da Cidade seria reinstalado, ocultado por Braide à TV Mirante, seria o Parque do Bom Menino, unidade de conservação ambiental constituída em 2013, no Centro da capital, mais especificamente na área do anfiteatro onde tradicionalmente são realizadas as atividades do GDAM (Grupo de Dança Afro Malungos), por já possuir infraestrutura básica de apoio existente, como arquibancadas, banheiros e salas de apoio.
A instrução do processo, porém, foi contestada pela especialista na área jurídica e de licitações da própria Semispe, Elza Helena Serejo Braide.
Em despacho assinado pela Assessoria Jurídica da pasta em junho, que cita “execução de obras” embora o processo trate apenas de elaboração de projetos técnicos, ela aponta ausência de documentos essenciais para o avanço da reativação do Circo da Cidade na unidade de conservação, entre eles a comprovação da viabilidade técnica e locacional da área proposta e a manifestação dos órgãos competentes sobre sua adequação.
No mesmo parecer, em interpretação que extrapola o previsto na LAI (Lei de Acesso à Informação) sobre documentos preparatórios a um procedimento licitatório, Elza Braide também orienta que o processo seja colocado sob sigilo até a fase de publicação. A orientação, no entanto, contraria o princípio da publicidade previsto na Constituição e na nova Lei de Licitações (14.133/2021).
“Os artefatos gerados e inseridos no SEI deverão ser classificados com nível de acesso restrito (hipótese legal – Documento Preparatório, conforme art. 7º, § 3º da Lei nº 12.527/2011) até que o procedimento da contratação esteja apto à publicação”, argumenta.
Para o advogado Daniel Domingues, especialista em direito administrativo, casos que tratem de obras custeadas com recursos públicos estão sujeitos aos princípios da transparência e ao controle social, e precisam ter projeto básico antes da licitação. Ele comentou a situação considerando apenas aspectos técnicos de processos licitatórios, sem saber de qual obra específica ou gestão pública se tratava.
“Se é obra pública, ele tem que dizer onde é, tornar público o processo em site próprio e informar ao Tribunal de Contas”, afirma Domingues ao Atual7. “No projeto básico, você traça todo o escopo, todas as características dessa obra. É onde se definem as características principais. Não pode iniciar licitação de obra sem projeto básico. Tem até súmula do TCU. A lei 14.133 também estabelece e veta. É proibido.”
O Circo-Escola Nelson Brito também não consta originalmente no Plano de Contratações Anuais (PCA) consolidado da Prefeitura de São Luís em 2025. A ausência gerou inconsistências jurídicas apontadas pela própria área técnica da gestão municipal, que fez ajustes em seguida, mas não avançou no processo.
“É irregular uma obra pública não constar no PCA. Ela tem que estar no orçamento”, afirma Daniel, que é fundador e presidente do Instituto Maranhense de Direito Administrativo e Municipal (IMDAM) e instrutor da Escola Superior de Controle Externo (EXCEX) do TCE do Maranhão. Segundo o especialista, é possível fazer ajuste no PCA após a abertura do processo, desde que devidamente motivado e compatível com a lei orçamentária. Sem esta justificativa, há risco de implicações para o gestor. “Pode configurar improbidade, porque dentro dos crimes de improbidade estão as violações do princípio da legalidade”, alerta.
Segundo a legislação, o PCA deve ser elaborado até a primeira quinzena de maio de cada ano e deverá ser divulgado e mantido à disposição do público em site eletrônico oficial.
MAIS PROMESSAS
Durante o primeiro mandato da gestão Braide, artistas conseguiram articular reuniões com a Secult (Secretaria Municipal de Cultura). À época, o coletivo “Cadê o Circo”, que tem Beto Ehongue entre os membros, manteve diálogo com o então secretário Marquinhos Duailibe por cerca de um ano.
Em fevereiro de 2022, houve um avanço aparente: a Secult e representantes do movimento “Cadê o Circo?” assinaram um termo de compromisso com diretrizes para a reabertura do espaço. O documento, até hoje não tornado público pela prefeitura de São Luís, estabelecia um diálogo permanente e uma agenda para a retomada das atividades.
“A gente teve série de reuniões, não exatamente com ele [Braide], mas com o Secretário de Cultura”, conta Beto. “A gente passou quase um ano, eu vou dizer, perdendo tempo, porque a impressão que a gente tem agora é que ele estava só cozinhando a gente.”
Os artistas visitaram diversos locais possíveis: Parque do Bom Menino, a antiga Fábrica São Luís na Madre Deus e a área próxima ao Bar Canal, também no Aterro do Bacanga. “A gente fez série de visitas lá no Parque do Bom Menino. Houve um certo adiantamento de que a gente até achou que ia dar certo”, recorda Beto. O próprio parque chegou a oferecer uma sala para o coletivo iniciar atividades.
Durante as conversas, segundo Beto, a própria direção do Parque do Bom Menino descartou a proposta, alegando que eventos culturais até tarde da noite afetariam a dinâmica do parque, que tem horários específicos para atividades físicas. Ainda segundo ele, o Ministério Público também teria se manifestado contrariamente à instalação do Circo da Cidade no local, por questões ambientais.
“O que prova ainda mais a incompetência da gestão, porque é a mesma gestão”, critica Beto. “Nem entre eles conseguem se acertar para definir alguma coisa.”
A última reunião agendada com Duailibe simplesmente não aconteceu. “A gente chegou lá na secretaria, ligaram para ele: ‘Ah, não vou poder ir porque eu tenho um parente meu que eu estou acompanhando no médico’. Mas ele não informou ninguém”, critica Beto Ehongue. “Depois desse dia a gente viu que realmente não havia interesse.”

O ator-mímico Gilson César também aponta o abandono das conversas para reativação do Circo da Cidade: “O novo secretário [Maurício Itapary] assumiu, e aí acabou de vez. Não se fala mais.”
O Atual7 ligou para o telefone celular e enviou mensagens no WhatsApp para o ex-secretário Marquinhos Duailibe no domingo (19) e nesta terça (21). Não houve resposta. A reportagem procurou a Secult, via e-mail enviado no último dia 13 de outubro, mas não houve retorno.
EVENTOS, NÃO CULTURA
A ausência do Circo da Cidade se soma ao fechamento de outros equipamentos culturais em São Luís. O Centro de Criatividade Odylo Costa Filho, de responsabilidade da gestão estadual, está fechado, assim como outros espaços que eram referência para os artistas locais.
“A gente tem perdido muito mais espaço”, lamenta o ator-mímico Gilson César. “Se você pegar todos os órgãos de cultura, todos estão fechados, praticamente sem funcionar. A gente está vivendo uma política de eventos, de eventos com atrações nacionais, tanto a nível municipal como estadual.”
Os artistas maranhenses criticam o contraste entre os milhões gastos com shows de artistas de fora e a falta de investimento em estruturas permanentes para a produção cultural local. “É tipo assim, um disparate imenso, né? Milhões de reais para um artista de fora e o pessoal da cultura local passando fome”, critica Beto Ehongue.
“O Maranhão se destaca por um estado desumano na questão social, nas políticas públicas, desigualdade. O Brasil avançou, mas a gente parece que não progride, apesar de São Luís ser um berço cultural reconhecido internacionalmente. Então, o problema está no desajuste político, na desigualdade. Não há política pública, mas apenas evento festivo”, reflete Gilson César.

Rosa Ewerton é mais direta sobre a gestão municipal. “Esse prefeito que tá aí não oferece uma luz. Deixou pra lá, não tem mais nada. O secretário de Cultura é o mesmo que nada, mal fala com a gente. A gente não tem retorno nenhum dessas pessoas, dessas instituições”, dispara.
Questionado se ainda acredita na reativação do circo, Beto pondera. “Eu acho que se a classe se mobilizar de novo, ainda mais aproveitando o âmbito eleitoral, é possível que a gente consiga trazer o circo de volta, em função mesmo do ano eleitoral, porque assim, interesse mesmo do governo não há.”
Gilson é mais pessimista. “No atual momento político eu não acredito. Quem está no poder, não tenho como provar, mas acredito [que não vai reativar o circo] pelo fato de não ter uma preocupação com a cidade, com a população.”
Rosa é categórica. “Não vai. Onde? Como? Quem? Não vai.”
Beto ainda guarda uma última proposta: ocupar um espaço abandonado e recriar o Circo da Cidade por conta própria. “A gente já chegou a fazer algumas reuniões e disse, vamos ocupar, cara. A gente bota as coisas lá, abre uma lona. Mas uma ocupação dessa requer muitos recursos, recursos humanos, recursos financeiros, recursos políticos, recursos de mídia. E a gente não vive de buscar o circo, a gente vive de outras coisas, o circo é uma coisa que é uma causa nossa”, conclui.
OUTRO LADO
O Atual7 enviou há mais de uma semana e-mail à Secom (Secretaria Municipal de Comunicação Social), Secult e ao próprio Eduardo Braide com questionamentos sobre a declaração do prefeito de São Luís em setembro de 2024, quando afirmou durante a campanha de reeleição que a licitação da obra já estava autorizada; por que o processo administrativo só foi aberto em abril de 2025, sete meses depois; a ausência do Circo Nelson Brito no PCA de 2025; o status dos projetos técnicos, cujos prazos (julho a outubro de 2025) já estão vencidos; o cronograma e orçamento da obra; e se há nova localização prevista para o equipamento. Não houve retorno.
[LINHA DO TEMPO]
- 1999 (março): Inauguração do Circo Cultural Nelson Brito no Aterro do Bacanga
- 2009: Lei 5.084 renomeia oficialmente o equipamento
- 2012: Desmonte para dar lugar ao VLT
- 2013-2020: Edivaldo Holanda Júnior promete reconstrução do espaço cultural, com apresentação de maquete virtual
- 2020: Braide coloca a reativação no plano de governo (primeira campanha eleitoral)
- 2021-2024: Primeiro mandato de Braide, sem execução
- 2022 (fevereiro): Assinatura de termo de compromisso entre Secult e movimento “Cadê o Circo?”
- 2024 (setembro): Braide repete promessa eleitoral e afirma, em setembro daquele ano, que a licitação “já estava autorizada”
- 2025 (abril): Processo aberto apenas para projetos técnicos
- 2025 (julho-outubro): Prazos vencidos
- 2025 (setembro): 13 anos sem o Circo da Cidade
- 2025 (outubro): Reportagem do Atual7 revela irregularidades no processo técnico da prefeitura

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