Artigo

O uso da razão em meio à pandemia

Por João Gonsalo de Moura*

Entre uma recessão e outra, os últimos duzentos anos da história da humanidade foram marcados pela presença manifesta do fenômeno denominado crescimento econômico. Em toda a extensão da fase anterior da memória da vida humana sobre a terra, as condições de vida permaneceram praticamente inertes, ficando momentaneamente à mercê de contingências exógenas à economia, como seria o caso de eventos climáticos, epidemias e guerras. O indicador mais apropriado para revelar a notável evolução da renda média dos indivíduos ao longo dos dois últimos séculos é, sem dúvida, a produtividade do trabalho, que apresenta um desempenho vultoso no período. Os investimentos maciços em equipamentos, o progresso tecnológico acelerado e a elevação contínua do nível de instrução da sociedade foram os principais fatores determinantes da referida evolução.

Entretanto, mesmo com a prevalência dos fatores supracitados, que dependem das decisões dos indivíduos, causas exógenas continuaram a exercer um papel de destaque, se manifestando de forma recorrente e provocando estragos consideráveis no curso normal dos acontecimentos. O atual momento, marcado pelas medidas de distanciamento social destinadas ao combate à pandemia global, retrata adequadamente os contextos em que o progresso das nações sofre uma interrupção brusca, remodelando totalmente a trajetória dos indicadores econômicos. Quando deliberações dessa natureza são impostas aos indivíduos, os mesmos deixam de interagir economicamente e, consequentemente, um dilema de curto prazo vem à luz, qual seja: salvar vidas humanas em contraposição ao sacrifício de postos de trabalho.

Em meio a esse cenário, a população tem sido massacrada por um conjunto infindável de opiniões, algumas delas apontadas como emissárias incontestáveis da ciência, como se o emprego de decisões com base científica constituísse apenas uma adesão à opinião majoritária. Como a verdadeira ciência só sobrevive e prospera quando se propõe a solucionar questões pertinentes à razão, e não quando se identifica uma opinião majoritária, convém, neste instante, tentar propor aqui algumas indagações que sejam efetivamente relevantes. Pensando como um economista, diante das atuais medidas de isolamento social, seria conveniente questionar: quantas vidas foram realmente salvas neste período? Quantas pessoas deixaram de ser infectadas em decorrências das providências tomadas? Qual foi a quantidade de empregos sacrificados por cada vida salva? Qual foi a quantidade de empregos sacrificados por cada pessoa que deixou de ser infectada?

Se as interrogações acima apresentadas devem ser respondidas com vistas à identificação dos efeitos de curto prazo do distanciamento, no caso do longo prazo também se fazem oportunos alguns questionamentos fundamentais, quais sejam: quantas pessoas perderam as suas ocupações de forma permanente? Qual será o impacto do desemprego (e a consequente redução na renda per capita da população) sobre a taxa de mortalidade futura? A literatura econômica está repleta de estudos que associam a mortalidade com a renda média dos habitantes de um país ou região. Portanto, qualquer medida que provoque desemprego em massa tende a contribuir para o aumento da taxa de mortalidade no longo prazo. Ou seja, vidas salvas no presente podem ser perdidas precocemente em um período mais à frente em razão da degradação das condições de vida, conforme demonstra um conjunto expressivo de estudos científicos.

Diante do dilema exposto, convém ressaltar, que a adoção de certa decisão, ancorada na ciência, seria aquela que levasse em consideração a realidade e projeções para a dinâmica de indicadores tais como: evolução do número de óbitos, quantidade de óbitos evitados, evolução do conjunto de contaminados, montante de infecções evitadas, total de empregos sacrificados, efeitos da recessão sobre as condições de pobreza e, consequentemente, sobre a taxa de mortalidade futura em decorrência da degradação das condições vida. Quando as decisões não são embasadas em reflexões dessa natureza, mas especificamente em opiniões majoritárias, as mesmas podem ser consideradas legítimas por vivermos em uma democracia, mas a ciência não pode ser invocada como fundamento.

Como as respostas às indagações expostas acima dependem de dados para embasá-las e somente com a evolução do tempo informações mais robustas estarão disponíveis, para que a ciência possa ser invocada é necessário que as autoridades encontrem um equilíbrio em suas atitudes, observando e tomando como referência o curso daqueles indicadores. Convém que os mesmos sejam examinados de forma recorrente e que essa avaliação produza reflexões razoáveis sobre o curso dos acontecimentos, priorizando a razão em detrimento das paixões pessoais, para que delas ninguém se torne refém. À medida em que os dados se tornarem disponíveis o conhecimento acumulado estará se expandindo, possibilitando aos gestores um cenário mais propício para o uso da razão. Na história da humanidade, nenhuma epidemia matou mais do que as ações de alguns líderes ideológicos do século anterior, quando resolveram impor aos cidadãos os arbítrios oriundos de suas paixões pessoais.

Não devemos atribuir a nenhum governante o direito de decidir sobre a vida e a morte. Ao contrário, o uso dos indicadores propostos serve, especialmente, para manifestar claramente aos gestores públicos as reais consequências de seus atos, em relação à saúde física do corpo e, também, no tocante à saúde financeira dos governados.

*Doutor em Economia - Professor Associado do Departamento de Economia da UFMA ([email protected])

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