Lembrar ou esquecer?
Artigo

Lembrar ou esquecer?

Por Alexandre Antonio Vieira Vale

Quais as lembranças que você guardará na memória do ano que agora termina? Muitas pessoas com quem tenho conversado me dizem que 2020 é um ano que devemos esquecer. Outras afirmam que as adversidades e tragédias ainda em curso são mais do que suficientes para o período. Uns tantos vislumbram no próximo ano a perspectiva de transformação e dias melhores.

É natural nossa vontade de esquecer as vivências marcadas pela angústia, os momentos que nos causam dor, as perdas indesejadas e inevitáveis que caracterizam nossa existência. Somos seres constituídos para a busca da felicidade. Embora nem sempre saibamos o que de fato ela signifique e o que em verdade devemos fazer para um dia alcançá-la, se isso realmente for possível. Portanto, em múltiplas circunstâncias, nem sempre explicáveis de forma racional, esquecer é o que nos resta fazer. Até para que possamos manter a lucidez.

Às vezes precisamos deixar muitas coisas pelo caminho. Aprendi isso da primeira vez que fui subir uma montanha. Alegre com a possibilidade de fazer algo que sempre tive vontade, peguei a maior mochila que tinha e nela coloquei várias coisas que para mim pareciam essenciais e indispensáveis ao alcance da meta. Em minha visão estava sendo previdente e me antecipando de todas as formas aos eventuais problemas que a escalada pudesse me trazer.

Montanhas eram e continuam sendo para mim, ao mesmo tempo, um fascínio e um mistério. Naquela ocasião, precisava estar preparado da melhor forma possível para enfrentar os desafios da escalada. Parte significativa desse preparo está ligada aos equipamentos que levamos para tornar a tarefa mais segura e fácil. Minha mochila estava cheia do que, em minha inexperiente percepção, eu julgava precisar.

Qual não foi minha surpresa ao chegar à base da montanha? Na reunião inicial para as orientações sobre a atividade o guia me perguntou se vinha participar de uma escalada ou de um acampamento para vários dias. Disse-me que se eu realmente quisesse subir a montanha, precisava retirar vários itens de minha mochila. Ela estava muito pesada. E, à proporção que a altitude aumentasse, a sensação de peso se ampliaria, ao ponto de não me permitir chegar ao cume.

E o que devemos deixar pelo caminho? O que é imperativo retirar da “bagagem” que carregamos ao longo da vida? Podemos começar por tudo que nos impede de sermos plenos em todas as dimensões da nossa humanidade; tudo que compromete nossa capacidade de lutar por dignidade e justiça para todos; tudo que envenena nossos corações e mentes com o medo, a mentira, o ódio e o rancor; tudo que representa obstáculo à possiblidade de concretização da harmonia, da paz e do amor na humanidade. Cada um que faça sua própria avaliação dos “itens” aos quais pretende renunciar.

Se esquecer e deixar o que não é essencial para trás é importante, o que lembramos talvez seja a parte mais significativa do que somos como indivíduos. O que recordamos, muitas vezes com especial afeto, de certa forma nos define. É parte fundamental de nossa identidade e dos valores que imprimem em cada gesto cotidiano um sutil e inelutável toque de nobreza.

Por isso, disse a todos os meus interlocutores que me afirmaram que 2020 é um ano que devemos esquecer, que simplesmente, embora em meio ao inesperado, ao inusitado, ao obsceno, à tragédia e a tantas outras coisas indesejadas que foram nossas companheiras involuntárias ao longo desse ano, há muitas coisas que a minha memória não deseja e não se permitirá jamais esquecer.

Não vou esquecer que muitas vidas foram perdidas em meio à atual pandemia. Aos familiares e amigos que agora processam a dor do luto, minha compaixão e solidariedade. Não quero e não vou esquecer a bravura e a altivez dos profissionais da área da saúde que dedicam seu trabalho e suas vidas ao cuidado e à salvação de outras vidas em meio a essa tragédia ainda em andamento. Não consigo esquecer a criatividade, o empenho e o talento de todos os cientistas e pesquisadores que trabalham no desenvolvimento de vacinas eficazes, esperança de retorno a uma provável normalidade, ainda que marcada por muitas modificações com as quais teremos que conviver. Não é possível esquecer os gestos de alteridade e de apoio que amenizaram o sofrimento de milhares de seres humanos em todo o mundo. Eles demonstram que ainda é possível construirmos uma realidade mais equitativa, harmoniosa e fraterna.

Quando falamos do delicado tecido da existência, esquecer e lembrar são dimensões indissociáveis, complementares e que não devem ser entendidas pelas lentes da superficialidade que marca a maioria de nossas percepções. A relação que estabelecemos com o que esquecemos e o que somos capazes de para sempre lembrar pode significar a diferença entre o que conseguimos concretizar e o que permanecerá como desejo e projeto irrealizado. Pode se traduzir na perpetuação de atrocidades e indignidades que gradativamente têm o potencial de tornar a existência humana banal e inviável ou na consolidação das transformações indispensáveis à nossa sobrevivência como espécie e à preservação do planeta.

Daqui a um tempo, muito do que aconteceu em 2020 eu não terei nenhum prazer em lembrar. Mas não me permitirei esquecer que esse ano e suas adversidades me ensinaram que vale a pena lutar por tudo que resgata em nós a dignidade de sermos singularmente humanos. Desejo a todos que 2021 seja pleno de saúde, paz e felicidade.

*Alexandre Antonio Vieira Vale, auditor de controle externo do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão. Especialista em Administração Pública.

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