Artigo

Opção pela tragédia?

Por Alexandre Antonio Vieira Vale*

Constatar que vivemos tempos estranhos é quase uma obviedade. Declarar-se assustado diante de fatos cujo imperativo maior é combatê-los trata-se de covardia inadmissível, se analisamos tal atitude à luz da responsabilidade moral que o momento atual exige de todos nós.

Por múltiplas circunstâncias e motivos que hoje não mais são justificáveis, penso que fomos tolerantes (continuamos a ser?), para além do razoável, com atitudes, concepções e percepções que nos conduziram à degradação do processo civilizatório que no instante vivenciamos em nosso país.

Pouco a pouco, às vezes de forma sutil e outras tantas sem nenhum pudor, fomos permitindo, individual e coletivamente, que as questões mais relevantes para a definição dos matizes de nosso cotidiano se tornassem desimportantes, perdessem seu caráter essencial, deixassem de ser tratadas com a profundidade e a urgência necessárias, se perdessem no emaranhado de fatos e aspectos banais que povoam o limbo ao qual relegamos tudo que para nós se reveste de insignificância.

Alçamos a negligência a prática cotidiana, alicerçada na real ou imaginária complexidade dos problemas, como justificativa para a inação, mesmo podendo-se algo fazer. A indiferença é a companheira habitual de muitos, consolidada na luta pela própria sobrevivência, que nesse afã não concebe que outros seres estão em processo similar e que seria mais frutífero para todos se fôssemos mais acolhedores e colaborativos. O ódio tornou-se o insano conselheiro de todas as ocasiões, expresso com particular virulência na tentativa de anulação das subjetividades que não comungam do que muitos pensam ser a verdade absoluta e inquestionável.

O país onde compartilhamos nossas possibilidades e vivências por ora se degrada de forma inexorável e em ritmo acelerado. Em contraposição a essa assertiva, não me venham brandir índices macroeconômicos, potencialidades de mercado, balança comercial favorável (será mesmo assim?), capacidade produtiva do agronegócio (que além disso é pop, seja o que isso queira dizer), a estabilidade e funcionamento das instituições e o caráter acolhedor, pacífico e trabalhador do povo brasileiro. E tantas outras frases grandiloquentes, ufanistas e vazias de significado.

Penso na nação que hoje está à deriva. Menciono a ausência de projetos factíveis que tratem das questões essenciais, de forma ao encaminhamento de soluções que possibilitem o aproveitamento da capacidade criativa e de trabalho de nossos cidadãos. Reporto-me à completa ausência de ética, postura e princípios de muitas de nossas autoridades que se reflete na pífia atuação da maioria de nossas instituições republicanas. Refiro-me a sermos quase um proscrito na comunidade internacional, sem prestígio ou credibilidade, em aspectos nos quais já fomos relevantes e tínhamos atuação altiva, como a questão ambiental, o combate à fome no mundo, a quebra de patentes como alternativa de acesso a medicamentos a preços mais justos e outras tantas questões indispensáveis ao futuro do Brasil e do mundo.

De que podemos nos orgulhar no momento? Uma análise lúcida de nossa atual realidade como país no brindará com alguma alegria? Em que aspecto podemos inflar o peito de maneira que nosso orgulho de sermos brasileiros suplante a imensa vergonha que por ora muitos sentimos, não de sermos brasileiros, mas da persistente falta de perspectiva em relação a um futuro melhor?

Custa-me crer que fizemos a opção deliberada pela tragédia, mas preciso de fatos consistentes que me convençam do contrário. A cada relatório da ONU que analisa a evolução do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) regredimos algumas posições. A pandemia que atualmente assola o planeta já dizimou mais de 180 mil brasileiros. As pesquisas sobre a percepção da corrupção nos apontam como um dos países mais corruptos do mundo. O desempenho de nossos estudantes ainda deixa muito a desejar quando comparado com o de estudantes de outros países em condições semelhantes ao nosso. Os indicadores relativos à violência ostentam níveis inaceitáveis. A desigualdade socioeconômica e a concentração de renda permanecem como chagas ainda intransponíveis e que marcam, de forma negativa, diversos campos, em particular nosso mercado de trabalho, fundado no caráter exploratório e cujas relações estão cada vez mais fragilizadas e desprotegidas do ponto de vista legal.

Por vezes tenho a impressão de que fatos dessa natureza nos causam pouco incômodo, quem sabe por não sermos imediata e diretamente atingidos por eles em nossa relativa zona de conforto. Mas convém lembrar da transitoriedade e fragilidade de tudo. Não para aterrorizar ou constranger, mas para despertar em nós consciência e atuação transformadora.

Numa realidade cada vez mais complexa e interdependente, os frutos da nossa arrogância, da nossa indiferença, da nossa inação, da nossa insensibilidade, da nossa negligência e do nosso ódio podem inviabilizar as conquistas do processo civilizatório, elementos indispensáveis às legítimas aspirações de dignidade pessoal e material; de alcance da prosperidade por países e nações, tendo por alicerce os direitos fundamentais e inalienáveis que fazem com que nos reconheçamos como humanidade. É sinal de lucidez fazermos a opção consciente pela barbárie?

*Alexandre Antonio Vieira Vale, auditor de controle externo do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão. Especialista em administração pública.

Tudo sobre


Comentários 7

  1. Aline Sampaio

    Reflexões tão contundentes quanto instigantes! Parabéns, Alexandre pela maestria com as palavras e humanas inquietações .

  2. Augusto Vale

    Uma análise realista do momento conturbado que vive o país. Fica o questionamento. Parabéns!!!

  3. Augusto Vale

    Até Quando? O povo não tomara um posicionamento consciente diante dos acontecimentos?

  4. Fernando Abreu

    Profunda reflexão com as cores da urgência que o momento exige. A opção pela barbárie atende aos interesses imediatistas de quem não percebe que cedo ou tarde também será tragado por ela. A ganância é cega e, no limite, suicida.

Comente esta reportagem Cancelar Resposta