Constatar que vivemos tempos estranhos é quase uma obviedade. Declarar-se assustado diante de fatos cujo imperativo maior é combatê-los trata-se de covardia inadmissível, se analisamos tal atitude à luz da responsabilidade moral que o momento atual exige de todos nós.
Por múltiplas circunstâncias e motivos que hoje não mais são justificáveis, penso que fomos tolerantes (continuamos a ser?), para além do razoável, com atitudes, concepções e percepções que nos conduziram à degradação do processo civilizatório que no instante vivenciamos em nosso país.
Pouco a pouco, às vezes de forma sutil e outras tantas sem nenhum pudor, fomos permitindo, individual e coletivamente, que as questões mais relevantes para a definição dos matizes de nosso cotidiano se tornassem desimportantes, perdessem seu caráter essencial, deixassem de ser tratadas com a profundidade e a urgência necessárias, se perdessem no emaranhado de fatos e aspectos banais que povoam o limbo ao qual relegamos tudo que para nós se reveste de insignificância.
Alçamos a negligência a prática cotidiana, alicerçada na real ou imaginária complexidade dos problemas, como justificativa para a inação, mesmo podendo-se algo fazer. A indiferença é a companheira habitual de muitos, consolidada na luta pela própria sobrevivência, que nesse afã não concebe que outros seres estão em processo similar e que seria mais frutífero para todos se fôssemos mais acolhedores e colaborativos. O ódio tornou-se o insano conselheiro de todas as ocasiões, expresso com particular virulência na tentativa de anulação das subjetividades que não comungam do que muitos pensam ser a verdade absoluta e inquestionável.
O país onde compartilhamos nossas possibilidades e vivências por ora se degrada de forma inexorável e em ritmo acelerado. Em contraposição a essa assertiva, não me venham brandir índices macroeconômicos, potencialidades de mercado, balança comercial favorável (será mesmo assim?), capacidade produtiva do agronegócio (que além disso é pop, seja o que isso queira dizer), a estabilidade e funcionamento das instituições e o caráter acolhedor, pacífico e trabalhador do povo brasileiro. E tantas outras frases grandiloquentes, ufanistas e vazias de significado.
Penso na nação que hoje está à deriva. Menciono a ausência de projetos factíveis que tratem das questões essenciais, de forma ao encaminhamento de soluções que possibilitem o aproveitamento da capacidade criativa e de trabalho de nossos cidadãos. Reporto-me à completa ausência de ética, postura e princípios de muitas de nossas autoridades que se reflete na pífia atuação da maioria de nossas instituições republicanas. Refiro-me a sermos quase um proscrito na comunidade internacional, sem prestígio ou credibilidade, em aspectos nos quais já fomos relevantes e tínhamos atuação altiva, como a questão ambiental, o combate à fome no mundo, a quebra de patentes como alternativa de acesso a medicamentos a preços mais justos e outras tantas questões indispensáveis ao futuro do Brasil e do mundo.
De que podemos nos orgulhar no momento? Uma análise lúcida de nossa atual realidade como país no brindará com alguma alegria? Em que aspecto podemos inflar o peito de maneira que nosso orgulho de sermos brasileiros suplante a imensa vergonha que por ora muitos sentimos, não de sermos brasileiros, mas da persistente falta de perspectiva em relação a um futuro melhor?
Custa-me crer que fizemos a opção deliberada pela tragédia, mas preciso de fatos consistentes que me convençam do contrário. A cada relatório da ONU que analisa a evolução do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) regredimos algumas posições. A pandemia que atualmente assola o planeta já dizimou mais de 180 mil brasileiros. As pesquisas sobre a percepção da corrupção nos apontam como um dos países mais corruptos do mundo. O desempenho de nossos estudantes ainda deixa muito a desejar quando comparado com o de estudantes de outros países em condições semelhantes ao nosso. Os indicadores relativos à violência ostentam níveis inaceitáveis. A desigualdade socioeconômica e a concentração de renda permanecem como chagas ainda intransponíveis e que marcam, de forma negativa, diversos campos, em particular nosso mercado de trabalho, fundado no caráter exploratório e cujas relações estão cada vez mais fragilizadas e desprotegidas do ponto de vista legal.
Por vezes tenho a impressão de que fatos dessa natureza nos causam pouco incômodo, quem sabe por não sermos imediata e diretamente atingidos por eles em nossa relativa zona de conforto. Mas convém lembrar da transitoriedade e fragilidade de tudo. Não para aterrorizar ou constranger, mas para despertar em nós consciência e atuação transformadora.
Numa realidade cada vez mais complexa e interdependente, os frutos da nossa arrogância, da nossa indiferença, da nossa inação, da nossa insensibilidade, da nossa negligência e do nosso ódio podem inviabilizar as conquistas do processo civilizatório, elementos indispensáveis às legítimas aspirações de dignidade pessoal e material; de alcance da prosperidade por países e nações, tendo por alicerce os direitos fundamentais e inalienáveis que fazem com que nos reconheçamos como humanidade. É sinal de lucidez fazermos a opção consciente pela barbárie?
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*Alexandre Antonio Vieira Vale, auditor de controle externo do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão. Especialista em administração pública.
Muito boa reflexão Alexandre, povo alienado.
Reflexões tão contundentes quanto instigantes! Parabéns, Alexandre pela maestria com as palavras e humanas inquietações .
Excelente reflexão.
Uma análise realista do momento conturbado que vive o país. Fica o questionamento. Parabéns!!!
Até Quando?
Até Quando? O povo não tomara um posicionamento consciente diante dos acontecimentos?
Profunda reflexão com as cores da urgência que o momento exige. A opção pela barbárie atende aos interesses imediatistas de quem não percebe que cedo ou tarde também será tragado por ela. A ganância é cega e, no limite, suicida.