Cena de “O Doutrinador”, série em quadrinhos de Luciano Cunha: inspiração no “Justiceiro”

Personagem de quadrinhos nacional faz sucesso assassinando políticos corruptos

Roteiro de “Doutrinador” já foi vendido e deve ganhar adaptação para os cinemas em 2018. Obra é inspirada em “O Justiceiro”, da americana Marvel

GAZETA DO POVO

“Voltamos ao vivo de Brasília, onde um carro invadiu o Congresso em alta velocidade e explodiu. (…) Com o Congresso em chamas, o cenário aqui é apocalíptico”, informa a jornalista em plantão extraordinário na TV. Sonho, pesadelo, ou realidade? É com isso que o quadrinista Luciano Cunha trabalha nas 79 páginas de “O Doutrinador” (Redbox Editora, 2015), obra inspirada em “O Justiceiro”, da americana Marvel, com várias outras referências, como os filmes “Um dia de Fúria” e “Bastardos Inglórios”, que vai virar filme em 2018 e ganhará ainda uma série de TV e outra de animação no ano que vem.

A obra mexe com o imaginário do brasileiro, cansado dos escândalos de corrupção da classe política. O Doutrinador, outrora um soldado treinado pelo exército brasileiro para a Guerrilha do Araguaia, se cansa do mau-caratismo, desfaçatez e enriquecimento ilícito dos políticos e passa a matar um por um. O pastor-deputado que é pego estuprando uma fiel, o vereador que frauda o Fundo de Participação Partidário, o governador que usa jatinho de empresário para viajar em campanha, o dirigente da associação de futebol envolvida em escândalo de propina, o secretário de obras que superfaturou o metrô: todos mortos pelas mãos do vigilante.

Na história, logo o Doutrinador ganha a opinião pública, cansada do cenário de exploração. Mas o roteiro também deixa no ar a dúvida: herói ou vilão? O governo, evidentemente, tenta achar um rival à altura do exterminador de ladrões; logo surgem seguidores, pessoas que se propõem a fazer o mesmo. O final da história simboliza algo que muitas pessoas declaram que gostariam de ver, especialmente nos dias atuais.

O Doutrinador, segundo seu criador, é protegido pelo povo
Luciano Cunha HQ caiu no gosto popular O Doutrinador, segundo seu criador, é protegido pelo povo

“A molecada está se lixando para a ditadura”

A ânsia por justiça no Brasil fez com que produtores enxergassem nesse filão um ótimo chamariz para o público. De contrato assinado com a Downtown Filmes, Cunha está co-redigindo com o ator Gabriel Weiner o roteiro do filme “O Doutrinador”, que vai reunir pontos de três edições da HQ (uma ainda inédita), com lançamento previsto para 2018. A direção do filme ainda está indefinida, mas tudo indica que deva ficar a cargo de Afonso Poyart, que lança na próxima semana o filme “Mais forte que o Mundo”, com a história do lutador José Aldo.

A história passará por vários dos problemas nacionais, desde a política abordada no primeiro número da edição, até a relação entre os radicais das redes sociais, o que será contado no número três, em produção. “Vai ter um pouquinho de cada uma”, conta Cunha, que – spoiler – explica: “O Doutrinador não é uma pessoa, é um ideal. Se alguém se sente imbuído do ideal, põe a máscara e vai. Em todas as histórias são pessoas diferentes atrás da máscara.” Assim, foi possível um reposicionamento do primeiro Doutrinador, um militar da época da Ditadura. “Pensamos na molecada de hoje. A molecada está se lixando para a ditadura, não se liga bem no que foi”.

Alexandre Nero e Sepultura

A relação com a mídia e suas influências nas leituras da sociedade também está no roteiro. “Terá uma repórter de uma grande emissora, de baixo escalão profissional, que bate de frente com o âncora e é demitida por criticar uma ação violenta da polícia. E aí ela funda um jornal online e esse jornal passa a ser a voz do Doutrinador com a sociedade”.

O protagonista ainda está indefinido. “Tem que ser um rosto novo, o cara tem que ter uma cara meio de maluco”, ri. “A gente não quer ninguém global, conhecido, até por que a maior parte do tempo ele vai estar de máscara. Pensamos lá atrás no Alexandre Nero, mas ele é muito ligado a novelas”, confidencia o autor sobre o ator curitibano.

Antes do filme serão lançados dois produtos auxiliares, duas séries. Uma com atores e oito episódios de 50 minutos, que será exibida na TV a cabo, e outra em animação, com mais de 20 capítulos. A diferença entre elas é que a animação vai ter a visão de um policial que persegue o Doutrinador. E terá bem mais ação. Um crescimento impressionante para quem começou com o apoio de dois amigos, distribuindo material via redes sociais, e encontrou na banda Sepultura o principal apoio para as primeiras vendas, através do site do grupo. Será deles, aliás, a trilha sonora das séries e do filme.

Tropa de elite

A HQ caiu no gosto popular recentemente, motivada pelos crescentes escândalos na política, embora ainda circule mais no roteiro underground. Assim, é impossível não se questionar: e se alguém bem treinado resolve tomar as dores e vestir a carapuça do Doutrinador nas ruas brasileiras? “Seria um desvio de conduta se pensarmos nos parâmetros da sociedade, mas não poderíamos dizer que seria algo de psicopatas. Seria algo de alguém que pensou e planejou pensando no contexto histórico e social”, analisa o psicólogo Paulo Abreu, coordenador do Instituto de Análise de Comportamento de Curitiba (IACC).

Para Abreu, a história expressa uma ânsia da sociedade atual. “É um reflexo do ponto em que tudo chegou. Pense num cidadão comum. Quando um político chega a uma situação insustentável, pedem a cabeça. Foi o caso da votação do impeachment. Um justiceiro levaria isso às últimas consequências ”, atesta, relembrando que cada época tem suas dores: “Alguém assim não seria viável há 50 anos aqui no Brasil, por que não haveria suporte social.”

“Sem dúvida que a principal razão do Doutrinador existir é a minha indignação com a classe política. Em 2010, não tínhamos nem como cogitar que um dia Sarney e Calheiros teriam prisão pedida. Então pensei, ‘vou por pelo menos no papel para sentir um pouco vingado’”, afirma Luciano Cunha. O autor defende que a liberdade criativa não pode ser levada para o aparecimento de uma série de vigilantes pelo Brasil. “Tenho certeza que isso não vai acontecer. A maior bilheteria orgânica do cinema nacional foi Tropa de Elite e ninguém da polícia virou o Capitão Nascimento. Talvez nos EUA, com a cultura de armas, seria diferente.”

Especialista em direito civil, o advogado Gustavo Flessak concorda com o autor. “Não é apologia ou incitação ao crime. Apologia é sobre algo que já ocorreu. Incitação é quando se instiga pessoas a praticarem ato criminoso. No direito penal o encaixe tem que ser preciso. Como o gibi não se enquadra, você tem a discussão sobre a liberdade artística. É só lembrar da música do Gabriel, O Pensador, “Hoje eu tô feliz, matei o Presidente”. Não citava o nome, mas sabia-se que era o Fernando Collor. Não houve processo.” Nenhum político é retratado com identificação na HQ, mas é possível reconhecer figuras que poderiam ser José Serra, Aécio Neves, Lula e Dilma. Porém, fica pela imaginação de cada leitor.

Quem vigia os vigilantes?

Apesar da aprovação da população, sempre haverá o risco de contar com alguém que faz justiça com as próprias mãos. “É a questão da pena de morte, quem pode garantir qual é o julgamento certo? Esse é o problema dos justiceiros. Cada pessoa tem seu viés ideológico, político.” Esse tema também já foi bem trabalhado nos quadrinhos, em Watchmen, da americana DC, de onde saiu a frase: “Quem vigia os vigilantes?”

E será que a própria repercussão cultural da história poderia causar impacto comportamental nos políticos brasileiros? “Nós não temos tanta cultura de leitura, então a obra não tem essa profundidade. Mas sim, se pensarmos só na reação de quem ler, a onda cultural por si só poderia inibir essas práticas na política. Porém… é algo bem utópico.” Tudo reflexo da necessidade social de termos heróis, bandeiras. “Tem uma capa da Veja com o Joaquim Barbosa, em que ele está de toga, de costas, com um simbolismo de uma capa. Alguém que peite essa turma. As pessoas querem acreditar nisso. O [Juiz Sérgio] Moro mesmo. Hoje as pessoas colocam ele nessa função de super-herói”

Luciano Cunha é apenas mais um entre tantos brasileiros que esperam novas ações na política brasileira, mesmo sem a figura real de um “Doutrinador”. Ele questionou o processo de impeachment de Dilma, mas celebra com esperança a Operação Lava-Jato. “Teve erros na conduta do processo, é difícil não achar que tenha um certo gosto partidário nas ações. Mesmo assim, o que está acontecendo é fundamental, está se passando a limpo o Brasil. Claro que é difícil que isso aconteça sem que as forças da nossa plutocracia se mexam, mas, enfim, eu nunca imaginava… o Doutrinador nasceu por conta da impunidade, com um sentimento de vingança contra isso. E a sensação de punição que a Lava-Jato tem trazido ao País é muito boa.”

“O Doutrinador” de Luciano Cunha pode ser encontrado pela internet no site Social Comics, que cobra um valor de R$ 19,90 mensal para dar acesso a essa e outras obras, entre elas “Deep Web”, o segundo volume. A edição três, “Zonas Autônomas”, também com críticas de comportamento político, será lançada na Comic Con Experience (CCXP) em novembro, em São Paulo.

Cena de “O Doutrinador”, série em quadrinhos de Luciano Cunha: inspiração no “Justiceiro”
Luciano Cunha/Reprodução Cansado dos escândalos de corrupção Cena de “O Doutrinador”, série em quadrinhos de Luciano Cunha: inspiração no “Justiceiro”

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