Artigo

Resgatar as cidades

Artigo de Alexandre Antonio Vieira Vale, auditor estadual de controle externo do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão. Especialista em Administração Pública.

A tragédia ocorrida no edifício Wilton Paes de Almeida, em São Paulo, revela muito sobre a indiferença e o descaso com que nosso país lida com alguns problemas graves, sobretudo quando eles afetam os segmentos sociais mais pobres.

Não é possível entendê-la sem levar em consideração a desordem existente na maioria das cidades brasileiras e que resulta, em boa parte, da omissão ou atuação ineficiente de vários segmentos dos poderes públicos.

Muitos de nossos centros urbanos se transformaram em lugares inóspitos a parte significativa dos cidadãos, que enfrenta batalhas diárias para assegurar as condições mínimas de sobrevivência em meio à ausência de infraestrutura, de saneamento básico, de saúde pública, de moradia adequada, de segurança pública, entre outros aspectos essenciais.

Hoje somos um país essencialmente urbano que não enfrenta como deveria os problemas que afetam suas cidades. A questão do déficit habitacional é uma das que está a exigir ações mais efetivas e urgentes, pelo evidente impacto social.

Os estudos e levantamentos são vários, mas todos afirmam que o déficit habitacional brasileiro é elevado e atinge aproximadamente seis milhões de famílias, que vivem em condições inadequadas ou simplesmente não têm onde habitar.

Para mudar essa realidade, um dos pontos de partida poderia ser a avaliação detalhada da política de governo para habitação de interesse social e habitação popular, que envolve programas como o “Minha Casa Minha Vida”.

Identificar se essa política fundamenta-se nos parâmetros adequados e se os programas e ações delas decorrentes atingem os objetivos propostos contribuirá para a implementação de alterações focadas no interesse social.

Ressalte-se que a convergência de crise econômica, perda da capacidade de investimento do país, denúncias de corrupção e falta de sensibilidade do atual governo para certas questões sociais, resultaram em cortes no orçamento destinado à área da habitação popular e na paralisação ou redução da quantidade de obras. Modificar esse quadro pernicioso é imprescindível.

No âmbito municipal, todas as ações e estratégias devem estar direcionadas a um objetivo primordial: devolver as cidades aos cidadãos que nelas vivem e que em sociedade compartilham ideais, metas e sonhos.

Muitas cidades brasileiras foram sequestradas pela junção da ausência de atuação eficaz dos poderes públicos e ação de organizações e grupos de interesse que atuam na fronteira da ilegalidade ou na própria ilegalidade. Olhar atento aos nossos espaços urbanos evidencia o que digo, por mais chocante que pareça minha afirmação.

As vias de nossas cidades são gerenciadas tendo como foco as pessoas ou os automóveis? Nossos espaços urbanos são públicos ou têm sido apropriados para fins privados? Em que medida temos constituído cidades capazes de incluir nos processos inerentes à cidadania e à dignidade humana indivíduos de todos os estratos socioeconômicos? Nossas cidades têm lidado com a questão do desenvolvimento sustentável com a seriedade e competência necessárias? Além disso, é preciso viabilizar soluções em segurança pública, educação, saúde, entre outros campos da gestão pública.

A verdade é que a maioria das cidades brasileiras está dividida em duas: uma em que habitam as pessoas com maior poder econômico e que portanto podem, por méritos próprios, arcar com os custos de um cotidiano com maior qualidade de vida, financiando inclusive estruturas que deveriam ser implementadas e mantidas pelos poderes públicos.

E outra que é habitada pelos segmentos mais pobres da população, desprovidos de acesso às condições básicas para uma existência digna, vítimas de toda sorte de violência aos seus direitos sociais e que ganham visibilidade aos olhos de parcela da sociedade e dos poderes públicos apenas quando acontece uma tragédia semelhante à que afetou os moradores do edifício Wilton Paes de Andrade. E que em poucos dias são esquecidos quando outros fatos igualmente trágicos passam a ocupar os noticiários.

Esses dois universos urbanos estão claramente delimitados na geografia de nossas cidades. Consolidaram-se em razão de anos de omissão dos poderes públicos na implementação de medidas capazes de contemplar os interesses dos cidadãos e que poderiam ser efetivadas, por exemplo, pela vigência de planos diretores modernos, abrangentes, factíveis e amplamente debatidos publicamente. Outro fator que sedimentou esse quadro foi a especulação imobiliária, capitaneada por poderosas construtoras e incorporadoras que loteiam entre si as áreas com maior potencial urbano da cidade, com a conivência e a eventual corrupção de agentes públicos.

O corolário disso é que as cidades ficam divididas também em nossas percepções e imaginário, impedindo que consigamos fruir toda a riqueza que um convívio marcado pela diversidade pode nos oportunizar. E assim, provavelmente, deixamos de frequentar determinados lugares e vivenciar experiências que nos tornariam mais sensíveis e acolhedores às múltiplas subjetividades que se manifestam na contemporaneidade.

Precisamos transformar nossas cidades em espaços de convivência marcados pela inclusão, nos quais os problemas sejam enfrentados tendo como fundamento a prevalência dos direitos sociais e o respeito à dignidade humana.

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