Música de bandido?
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Música de bandido?

Artigo de Alexandre Antonio Vieira Vale, auditor estadual de controle externo do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão. Especialista em Administração Pública

O cantor César Menotti referiu-se ao samba como música de bandido. A afirmação, depreciativa e lamentável, de acordo com Menotti, não reflete sua percepção sobre o gênero musical e fez parte de episódio por ele vivenciado que desejava apenas relatar. Diante da repercussão negativa, Menotti desculpou-se publicamente.

Frases de conteúdo preconceituoso, ainda que proferidas em tom jocoso e sem a aparente intenção de ofender, em muitas ocasiões, expressam na verdade concepções nas quais invariavelmente seu emissor acredita, chancela, defende e, por razões inescrutáveis, é incapaz de assumir.

O artifício de contextualizar a fala num ambiente divertido e informal, na tentativa de reduzir a contundência ou o dano causados, não mais convence e apenas evidencia o vazio existencial e argumentativo do enunciador.

Quais os crimes do samba? Que delitos podem ser imputados aos apreciadores, cantores e compositores desse gênero musical que faz parte da formidável miscelânia cultural que ajudou a aglutinar, a consolidar, a dar forma a nossa identidade como país e povo?

Talvez o de reunir elementos das três principais etnias que serviram de base ao povo brasileiro e traduzi-los numa riqueza rítmica ímpar, envolvente e vibrante, que se faz presente em todos os quadrantes do país, sendo reconhecida ao soar da primeira nota de cada melodia.

Ou quem sabe estejamos falando dos crimes cometidos por Cartola, Clementina de Jesus e Dona Ivone Lara, ícones improváveis que superaram toda sorte de adversidades para cantar sua refinada poesia, que fala das delícias e dores da vida das pessoas comuns, que em suma somos todos nós.

Se não estou enganado, o criminoso mor, com requintes de sociopatia por sua permanente serenidade, que muitos afirmam ser apenas frieza, seria um tal Paulinho da Viola; profundo conhecedor da alma humana e suas angústias, e por isso mesmo tido como manipulador; perseguido por ser um sensível cronista de algo que caiu em desuso e que um dia foi chamado de amor, além de acusado do imprescritível crime de tratar a Língua Portuguesa com raras elegância, precisão e reverência.

Em alguns estabelecimentos que frequento, tenho visto cartazes de “procura-se”, com a indefectível e nobre figura de Antonio Vieira, que há pouco tempo estava entre nós, mas que virou encantado e foi cantar suas cores, mandingas e sabores no céu. Ouvi dizer que alguns anjos deixaram de fazer parte do coro celestial para serem passistas, caindo no samba que agitou a infinita paz celestial.

Há instantes passou por mim uma viatura da polícia em disparada, perseguindo dois suspeitos num carro esporte que numa olhada rápida pude identificar como Bezerra da Silva e Moreira da Silva, sujeitos de alta periculosidade, cujo crime maior pode ter sido o de cantar com criatividade, ironia, malícia e talvez um toque de megalomania, crimes reais ou imaginários (quem sabe?) cometidos em suas comunidades.

O certo é que são múltiplos os crimes do samba. Ele é culpado de muitas coisas e não tem sequer direito a defesa. Uma de suas maiores atrocidades é ser um dos responsáveis por algo que se chama Carnaval. Um espetáculo torpe no qual pessoas de todas as cores, classes sociais, gêneros (todos eles), ao som de um barulho magnetizante, subvertem a realidade em três dias de celebração única, intraduzível e surreal.

Quase me esqueço. Há uma criminosa que é uma verdadeira diva, da estirpe de Aretha Franklin, Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, entre outras do mesmo naipe, mas cuja alcunha é um tanto comum: “Marrom”. Eu vi o nome de batismo em sua extensa ficha criminal: Alcione.

O presídio feminino está lotado de criminosas, entre elas Beth Carvalho, Dona Inah, Elza Soares, Leci Brandão, Martinália, Mariene de Castro, Nilze Carvalho, e por aí vai. Há mandados de prisão contra a nova geração do crime composta por Lucinha Guerra, Maria Rita, Mariana Aydar, Marisa Monte, Roberta Sá, Teresa Cristina e muitas outras.

Sim. São muitos os crimes do samba e de seus asseclas. Eles são criminosos audaciosos e sem cerimônia. Pois cometem seus crimes à luz do dia e sequer usam máscaras para ocultar suas faces. São bandidos raiz, autênticos, não dissimulados. Sempre se revelam incapazes de renegar suas identidades e origens.

Jamais tentam aparentar o que não são, buscando um refinamento que não possuem. Nunca mimetizam os bandidos do estrangeiro, que falam outras línguas, tem outros modos, atiram para todos os lados montados em seus cavalos e que no final ainda ficam com a moça mais bonita do baile. Não. Eles são incapazes disso.

A indumentária desses sambistas bandidos tem sutil elegância. Minimalismo na medida certa, com a concessão, às vezes, de um chapéu que harmoniza o conjunto da obra. No caso das mulheres, ocasionalmente pulseiras e colares bem escolhidos, a combinar com a luz dos sorrisos.

Nada que lembre calças e camisas apertadas de gosto duvidoso. Cintos com fivelas que parecem emular de forma tosca escudos de guerreiros espartanos. Botas apropriadas a um caubói de saloon ordinário de filme de faroeste inclassificável e outros adereços de quem se olha no espelho e já não se reconhece no personagem de atitudes e gestos melífluos e vazios, talvez cheio de uma solidão inconfessável.

Como se pode perceber, caro leitor, o mercado do crime está cada vez mais complexo, competitivo e sofisticado. É preciso ter coragem, criatividade, dignidade, talento e mais alguns atributos semelhantes para ser um criminoso bem-sucedido. Atributos em falta em quem se julga exclusivo e o mocinho dessa história: falando em tom de brincadeira ou expressando sem querer (quem sabe?) uma convicção inconfessável.

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