No período regencial da história brasileira foi promulgada a Lei Feijó, a qual proibia o tráfico negreiro, declarando livres os africanos desembarcados em portos brasileiros e punindo seus importadores. No entanto, o sentimento geral era que a lei não seria cumprida, uma vez que o Brasil não tinha interesse em acabar com a escravidão naquele momento, surgindo assim, a expressão “lei para inglês ver”, isto é, uma lei apenas para manter as aparências perante os britânicos. No âmbito das finanças públicas, a analogia pode ser feita ao destacarmos o esforço de equilibrar as contas públicas nas últimas décadas por meio de alterações legislativas, mas, estas possuem eficácia prática ou seriam apenas leis para “brasileiro” ver?
Desde a redemocratização, o país apresenta uma série de transformações legislativas com o pretexto de equilíbrio fiscal, sustentabilidade da dívida pública e do combate as injustiças sociais. Em 1989 e 1993, por meio das Leis nº 7.976, de 27 de dezembro de 1989 e nº 8.727, de 5 de novembro de 1993, tivemos duas rodadas de refinanciamento das dívidas da Administração Direta e Indireta as quais socorreram, de maneira paliativa, os entes públicos estaduais até 1997 quando foi realizada mais uma rodada de reescalonamento de dívidas por meio da Lei nº 9.496, de 11 de setembro de 1997. Até então, havia o mecanismo de captação de empréstimos por meio da emissão de títulos públicos dos próprios bancos dos estados, o que engendrava uma rolagem de dívida de maneira exacerbada, provocando a extinção de diversos bancos públicos estaduais, resultando, dessa forma, na concentração de emissão de títulos públicos pelo Governo Federal.
Na transição dos séculos XX para o XXI, o Governo Federal emplacou mais uma legislação, a mais popular na literatura de finanças após a Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964: a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (LC nº 101, de 4 de maio de 2020). Na época, a referida Lei viera buscar o equilíbrio intertemporal das contas públicas dos entes federativos. Dessa vez, havia indicadores de acompanhamento da situação das finanças, com a premissa de responsabilidade na gestão fiscal, como Despesa com Pessoal e Dívida em proporção da Receita Corrente Líquida – RCL. No entanto, em 25 de novembro de 2014 foi publicada a LC nº 148 com alterações das regras de indexação das dívidas renegociadas ao amparo da Lei nº 9.496/97, bem como a redução dos juros, troca do índice de correção monetária e desconto do saldo devedor (estoque de dívida). Dois anos calendários depois foi aprovada mais uma Lei, a LC nº 156, de 28 de dezembro de 2016, que permitiu a renegociação dos resíduos das dívidas da Lei nº 8.727/93, Lei nº 9.496/97 e das linhas de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, além de prever o chamado Teto de gastos (atrelado ao nível de preços) e o Novo Programa de Ajuste Fiscal – PAF, ficando a critério do ente escolher a melhor opção.
Com a dificuldade de cumprimento dos parâmetros estabelecidos nas legislações até então mencionadas, diversos governos estaduais tiverem um colapso em suas contas públicas – à título de exemplo atrasos no pagamento de salários de servidores, assim como de fornecedores – o que desencadeou na implementação de mais uma Lei, a LC nº 159, de 19 de maio de 2017, a qual estabelecia para os signatários um Regime de Recuperação Fiscal – RRF com duras medidas de restrição de gastos como a contratação de operação de crédito, admissão de cargos e de realização de concursos, dentre outras.
Em 2020, com a pandemia do Novo Coronavírus, a dificuldade financeira dos entes estaduais se agravou, sendo necessário a criação de mais uma medida visando o enfrentamento da crise fiscal. Neste caso, a LC nº 173, de 27 de maio de 2020, foi publicada e, dentre outras medidas, estabeleceu a transferência de auxílio financeiro a estados e municípios exigindo como contrapartida vedações quanto o aumento de despesas com Pessoal válidas até 31 de dezembro de 2021.
Por último, mas não menos importante, em janeiro de 2021, foi aprovada a LC 178, que trata do Programa de Acompanhamento e Transparência Fiscal – PATF, do Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal – PEF, de alterações no RRF e na LRF. Em apertada síntese, trata-se do mais novo regime fiscal, com alterações nas leis ora mencionadas (LCs nºs 101/00, 156/16, 159/17, e 173/20). Na prática, a vigente Lei estabelece, além dos Programas (PATF e PEF), repactuação de acordos sob a égide da Lei Complementar nº 156/16, da Lei nº 9.496/97, altera o RRF e define as medidas de reforço à responsabilidade Fiscal. Trocando em miúdos, não obstante os avanços trazidos por tais normas, a exemplo da LRF, o país é probo em criar legislações para que os entes federativos as executem, tal como narrado desde os anos 1980, mas, em geral, é ineficaz ao realizá-las. Mesmo com todos os esforços atinentes às normas estabelecidas, os problemas crônicos relativos ao controle e gestão dos gastos públicos persistem, o que nos faz refletir se serão “Leis para brasileiro ver”.
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¹Economista (UFMA), Mestre em Administração Pública (FGV) e Vice-Presidente do Conselho Regional de Economia do Maranhão.
²Economista (UFMA) com Pós em Estatística (UEMA) e Mestre em Desenvolvimento Socioeconômico (UFMA).
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