Ainda sob o impacto da funesta crise da Covid-19, que terrivelmente levou a óbito mais de 345 mil brasileiros, e que provoca danos sociais e econômicos de magnitude ainda assombrosamente incerta, as instituições tentam, minimamente, se organizar e projetar o pós-pandemia. Nessa perspectiva de reconstrução, foi editada, ainda em janeiro, a Lei Complementar n° 178/2021, que instaura o Programa de Acompanhamento e Transparência Fiscal (PATF) e o Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal (PEF) e modifica diversas normas, entre elas a Lei de Responsabilidade Fiscal/LRF – a Lei Complementar n° 101/2000. O objetivo principal da lei é viabilizar, doravante, o equilíbrio fiscal de estados e municípios, comprometido pela convulsão sanitária que agravou o quadro das contas públicas, e promover o pagamento de dívidas junto ao Governo Federal.
O PATF visa reforçar a transparência fiscal dos estados e municípios e compatibilizar as suas respectivas políticas fiscais com a da União. O PEF propõe metas pactuadas entre o governo central e instâncias subnacionais, para promover o equilíbrio fiscal e a melhoria da capacidade de pagamento dos últimos. Aderindo a esses programas, entes com dificuldades em honrar suas obrigações terão a possibilidade de obter novos empréstimos com o aval à União, desde que adotem providências tais como: redução de incentivos fiscais; adequação dos benefícios ofertados aos seus funcionários somente àqueles previstos no regime jurídico dos servidores federais e implementação de previdência complementar para seus servidores.
Contudo, inovação das mais protuberantes trazida pela LC n° 178/2021 e que deve trazer impacto para a contabilização da despesa com pessoal, notadamente para entes com déficits crônicos em seus sistemas previdenciários, foi o acréscimo do § 3° ao artigo 19 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Com esse dispositivo, fica cintilante a vedação de que órgãos deduzam, de sua despesa de pessoal, o valor despendido com o pagamento de aposentadorias e pensões que não têm cobertura de seus fundos previdenciários – os “inativos sem recursos vinculados”. Ou seja, verbas dos tesouros estaduais e municipais utilizadas para pagamento de beneficiários de aposentadorias e pensões, como se esses fossem servidores em atividade, tendo em vista que os sistemas de aposentadorias não têm condições de suportar tais desembolsos, passam a ser consideradas despesas com pessoal para obediência aos limites máximos estabelecidos pela LRF, isso em relação às suas receitas correntes líquidas.
Na prática, o que se vê, aqui e alhures, é que, historicamente, poderes e órgãos têm se utilizado de artificialismos, inclusive com respaldo de questionáveis decisões de entidades de controle, para subtrair, de suas despesas com pessoal, aquelas destinadas a pagar aposentados e pensionistas que não têm cobertura previdenciária, enquadrando-se, dessa forma, ilusoriamente aos limites determinados pela LRF.
No Maranhão, verificando-se os demonstrativos de despesa com pessoal referentes ao final de 2020, do Tribunal de Justiça (TJ), da Assembleia Legislativa (Alema), do Ministério Público (MPE) e do Tribunal de Contas (TCE), observa-se abatimento inoportuno e/ou omissão das despesas com seus aposentados sem recursos vinculados. Por exemplo, MPE e Alema descontam, respectivamente, R$ 57 milhões e R$ 21 milhões de gastos com aposentados de seus totais de despesas com pessoal, conforme ilustram seus balanços. Se esses dispêndios não fossem subtraídos do cálculo que apura as despesas com pessoal, o MPE ultrapassaria seu limite determinado pela Lei Fiscal e a Alema estaria próxima do seu. Essas controversas reduções estão “amparadas” pela decisão TCE nº 1.895/2002. Segundo a Lei n° 178/2021 poderes e órgãos que estiverem fora de seus limites ganham prazo de 10 anos para reenquadramento, com diminuição do excedente em 10% a cada ano, isso a partir de 2023.
Outras peripécias contábeis ainda precisam ser enfrentadas, como a dedução do valor do imposto de renda dos servidores do montante da despesa com pessoal, manobra condenada pelo Tesouro Nacional (Manual de Demonstrativos Fiscais/11ª Edição), mas que aqui é chancelada pela decisão TCE nº 15/2004, e que reduz infundadamente a cifra das despesas com pessoal. A bem da verdade, somente o Governo do Maranhão, dentro da nossa esfera estatal, não utiliza tais subterfúgios na apuração da despesa de pessoal para efeito dos limites estabelecidos pela LRF.
O problema é que invencionices como essas espalharam-se por todo o território do país, minaram as tentativas de produzir um ajuste fiscal nacional, crível e robusto, pois de tempos em tempos descobre-se que os demonstrativos fiscais não refletem, exatamente, a real situação financeira dos órgãos. E pior, em períodos de recursos absolutamente escassos, como os atuais, em que se tem severas dificuldades até para aprovar auxílio emergencial de, no máximo, R$ 375 mensais para os que passam fome, é inconcebível que a força de corporações, seja via isenções injustificáveis de impostos, seja por uma tributação pouco progressiva, ou mesmo por manipulação de regras fiscais, traga dificuldades para que numerários cheguem aos mais necessitados.
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*Doutorando em Administração, Mestre em Economia e Economista ([email protected])
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