A pandemia da Covid-19 volta a surpreender, assustar e provocar incertezas. Há poucas semanas a sensação era que caminhávamos para superar o mal. Todavia, a moléstia, que causou o óbito de mais de 668 mil brasileiros e estava com número de mortes em declínio, pode ganhar uma nova dinâmica de agravamento: pelo aumento da taxa de contaminação, a detecção de uma nova subvariante, a BQ.1, a dúvida sobre a eficácia das vacinas contra essa cepa e todas as instabilidades que essa situação pode causar. Contudo, as atenções do mundo político e econômico, e da sociedade como um todo, se voltam para o pós-eleições, visto que com a vitória indubitável de Lula (PT) – porém com menor diferença desde a redemocratização, com 1,8 ponto percentual – vários desafios do mundo real se impõem, em face dos problemas do país e das promessas de campanha. Nesse sentido, o primeiro grande obstáculo vem da área fiscal.
O orçamento para 2023, que está sendo processado no Congresso Nacional, não contém recursos para uma série de ações que foram objeto de compromissos assumidos durante a campanha pelo então candidato Lula. Entre esses, têm-se: a manutenção do Auxílio Brasil – que vai ser rebatizado de Bolsa Família – em R$ 600,00; o adicional de R$ 150,00 por criança menor de seis anos às famílias beneficiadas pelo Programa; o aumento real do salário-mínimo; a ampliação dos recursos para a Saúde e Merenda Escolar, além da reposição remuneratória para os servidores públicos federais. O atendimento dessas demandas, importa em conseguir algo entre R$ 150 a R$ 200 bilhões, e, ademais, embuti complexidades técnicas e econômicas.
A inicial é como operar orçamentariamente essa alteração. Para tanto, foram vislumbradas diferentes possibilidades. Uma alternativa seria a edição de uma medida provisória (MP) e abrir um crédito extraordinário para essas despesas. Outra, poderia ser a aprovação e execução do orçamento como planejado para 2023, que, por exemplo, só prevê recursos para o Auxílio Brasil de R$ 405,00 e não de R$ 600,00, e, em meados do ano seguinte, aprovar uma lei ampliando os recursos. Um terceiro artifício a ser empregado, e que parece ser o que deve ser adotado, por trazer mais segurança jurídica e, por isso mesmo, ter mais dificuldade de ser contestado adiante, é a aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC). Essa PEC, chamada de PEC da Transição, traria uma licença temporária para gastar (“waiver”) algo em torno de R$ 170 bilhões, em despesas que não constam no orçamento, e para descumprir a regra do teto de gastos – que limita a expansão das despesas à inflação do ano anterior.
No campo econômico, a efetivação desses gastos extras, que correspondem a quase 2% do nosso PIB (soma da riqueza produzida em um ano), gera tensão. Questiona-se que essas despesas adicionais deveriam ser atreladas a compromissos transitórios, como obras, e não a permanentes, como o salário-mínimo, o que pode vir a produzir nos anos subsequentes danoso descontrole fiscal. Uma outra questão é que há correntes petistas que defendem retirar, de modo perene, dispêndios com o Bolsa Família da regra do limite do teto de gastos, ou de norma que vier a sucedê-la, o que leva também a dúvidas quanto a sustentabilidade de trajetória do endividamento público. Defrontando-se com um orçamento fake para 2023 – triste legado de Bolsonaro –, que não contempla ou subestima diversos programas, é razoável que o no ano que vem alguma medida excepcional seja implementada para acomodar os compromissos. No entanto, tem-se que ter uma previsibilidade sobre a solidez das contas públicas, sob pena de termos: desconfiança dos investidores, fuga de capitais, dólar elevado, inflação e juros mais altos, fatores esses que prejudicam o bom andamento da economia, a geração de empregos e a ampliação da renda.
Na esfera política, com quase metade do país tendo votado contra Lula, o esperado é que a sociedade tenha pouca paciência com descumprimento das promessas de campanha. Circunstância que pode redundar em aumento da força do Centrão para impor suas pautas no próximo governo, deformando logo a fisionomia da gestão lulista, trazendo prematuros desgastes e fragilidades ao petista e fazendo recrudescer a potência de uma oposição congressual que promete ser bastante severa. Cenário esse que pode trazer sérias dificuldades políticas e administrativas para o novo mandatário, e que provoca automaticamente calafrios, ao lembrar das agruras vividas por Dilma em seu segundo governo.
Lula nem iniciou sua gestão e já enfrenta percalços, em princípio no âmbito fiscal. É um imbróglio que deve ser resolvido com uma dose ponderada de permissão para gastos que não têm previsão orçamentária, mas com o estabelecimento de novas regras fiscais críveis, que garantam solvência das contas públicas. O caminho, inescapável, é esse.
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*Doutor em Administração, Mestre em Economia e Economista ([email protected])
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