O desembargador José Luiz Oliveira de Almeida, da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, concedeu, nesta terça-feira 29, habeas corpus impetrado pela defesa do ex-secretário-chefe da Casa Civil no governo Roseana Sarney, João Guilherme de Abreu, detido em cela especial do Corpo de Bombeiros do Maranhão, por ser advogado, desde sexta-feira (25).
Na decisão, o magistrado salientou que a Superintendência de Investigações Criminais (Seic), autora do pedido de prisão, não explicou no Inquérito Policial a acusação de que Abreu, em liberdade, “colocaria em risco a sociedade, notadamente a probabilidade de reiteração criminosa, pois limitou-se a narrar os fatos tais como descritos na representação, sem contextualizá-los numa probabilidade empírica de recalcitrância delituosa”.
José Luiz Oliveira explicou ainda que, “de acordo com os fundamentos da decisão impugnada, que a gravidade abstrata do crime imputado ao paciente – recebimento de propina no valor de três milhões de reais -, não guarda relação lógica de causa e efeito entre sua suposta prática e o perigo de que novas condutas delitivas deste jaez tornem a ocorrer, o que é corroborado, também, pela constatação de que João Aguiar de Abreu não mais exerce qualquer cargo público no âmbito da Administração Pública Estadual, e ainda, pela inexistência de registros criminais anteriores em seu desfavor”.
Em um dos trechos, o desembargador ainda ironiza uma das justificativas apresentadas pela Seic no pedido de prisão de João Abreu, decretado pelo juiz Osmar:
“A decisão não explica de que modo um (suposto) recebimento de propina em 2013 ou início de 2014, e outras três garrafas de vinho colocaria toda a sociedade em grande risco?”, diz.
Abaixo, a íntegra da decisão:
SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL
Nº Único: 0008612-49.2015.8.10.0000
Habeas CorpusNº 048290/2015 – São Luís (MA)
Paciente: João Guilherme de Abreu
Impetrantes: Aldenor Cunha Rebouças Júnior
Impetrado: Juízo de Direito Central de Inquéritos da Capital
Incidência Penal: Arts. 317 e 333, do CPB
Relator: Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida
Decisão
O Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida (relator): Trata-se de habeas corpus com pedido de liminar, contra ato do Juízo de Direito Central de Inquéritos da Capital, impetrado pelo advogado Aldenor Cunha Rebouças Júnior, em favor de João Guilherme de Abreu.
Narra o impetrante que o juízo da Central de Inquéritos do termo judiciário de São Luís acolheu representação formulada por uma comissão de Delegados que preside o inquérito policial nº 23/2015-SEIC, e decretou a prisão preventiva[1] do ora paciente e dos investigados Alberto Youssef, Rafael Ângulo Lopez, Adarico Montenegro Filho e Marco Antonio de Campos Ziegert, indiciados pela prática, em tese, dos crimes tipificados nos arts. 317 e 333, do CPB, cujos fatos subjacentes guardam relação com a operação “Lava-jato”.
Com base em trechos da aludida representação das autoridades policiais, relata que os fatos investigados visam apurar a prática dos crimes de corrupção ativa e passiva, “que se destinaram a viabilizar o pagamento de um crédito, por parte do Estado do maranhão, no valor de R$ 113.366.859,84 (centro e treze milhões, trezentos e sessenta e seis mil, oitocentos e cinquenta e nove reais e oitenta e quatro centavos), em favor da empresa de Construção Civil UTC/CONSTRAN”.
Aduz que representantes da UTC/CONSTRAN e o Estado do Maranhão entabularam um acordo, consistente no pagamento da referida quantia de R$ 113.366.859,84 (centro e treze milhões, trezentos e sessenta e seis mil, oitocentos e cinquenta e nove reais e oitenta e quatro centavos), em 24 (vinte e quatro) parcelas mensais, o que culminou na sua exclusão da fila de precatórios, bem com na extinção de uma ação rescisória proposta pela Procuradoria Geral de Estado, contra a decisão constitutiva do referido crédito. Acrescenta que foram pagas 08 (oito) parcelas, até a suspensão do acordo, em virtude de decisão liminar concedida pelo juízo da 1ª Vara da Fazenda Pública da Capital, nos autos da Ação Popular nº 22918-54.2014.8.10.0001.
Prossegue o impetrante, citando a pré-falada representação, “que o paciente teria dado impulso para que a questão fosse solucionada, tendo efetivamente encaminhado a matéria à Procuradoria do Estado e a Secretaria de Planejamento, para emissão de pareceres técnicos visando a concretização do acordo” (p. 05), e que “os dados colhidos são contundentes no sentido de que efetivamente tenha havido uma negociação ao longo de meses e mediante contratos pessoais, entre Youssef – apontado como emissão da UTC/Constran – e o então Secretário da Casa Civil do Maranhão, João Abreu, intermediado por Marcão, visando a solução acerca do pagamento, por parte do Estado do Maranhão, de um precatório constituído em favor da UTC/Constran (p. 10)”.
Conclui a narrativa fática assentando, ainda de acordo com a multicitada representação, que o paciente, então Secretário da Casa Civil (2013/2014), incorreu, supostamente, na prática do crime de corrupção passiva, por ter aceitado o recebimento de elevados valores e de presentes (uma caixa de vinhos importados de alto padrão), para impulsionar a solução visando o recebimento do crédito da empresa UTC/Constran junto ao Estado do Maranhão.
Na sequência, o impetrante passa a hostilizar os fundamentos do decreto de prisão preventiva, enfatizando que:
I – o contexto fático narrado na representação engloba “datas antigas”, tais como final de 2013 e começo de 2014, evidenciando não haver urgência a justificar a decretação da prisão preventiva, que exige contemporaneidade dos fatos subjacentes;
II – “a decisão não explica de que modo um (suposto) recebimento de propina em 2013 ou início de 2014, e outras três garrafas de vinho colocaria toda a sociedade em grande risco?” (fls. 12);
III – a fictícia necessidade de se evitar a reiteração de crimes sequer foi citada na representação, e tal possibilidade inexiste, pois: “(1) Alberto Youssef está preso há mais de ano em Curitiba, como consignado no despacho de indiciamento, portanto, sem qualquer condição de entregar dinheiro ou vinho para outrem; (2) o Paciente não é agente público, portanto não se cogita de reiteração de corrupção e; (3) Roseana Sarney deixou de ser governadora do Estado” (fls. 13);
IV – a decisão que decretou a prisão preventiva é nula, por não ter justificado, de forma satisfatória, a impossibilidade de aplicação das medidas cautelares diversas da prisão (arts. 282 e 319, do CPP), olvidando o juízo dito coator da natureza de extrema ratio da segregação; e
V – as condições subjetivas favoráveis do paciente, ainda que insuficientes, por si sós, para elidir o decreto prisional, devem ser sopesadas, quando ausente os respectivos requisitos legais da segregação, ou mesmo diante da viabilidade de aplicação de medidas cautelares diversas da prisão.
Em arremate, o impetrante aponta, ainda, suposta violação às prerrogativas profissionais, em razão de cumprimento de mandado de busca e apreensão sem a presença de membro da OAB/MA, advertindo que as autoridades policiais sabiam que o paciente é inscrito nos quadros da ordem.
Com espeque nesses fundamentos, pede a concessão da ordem, liminarmente, para o fim de revogar a prisão preventiva do paciente, com a expedição de alvará de soltura, confirmando o provimento em julgamento meritório final.
A inicial veio instruída com os documentos de fls. 15/183, destacando-se a cópia do decreto prisional hostilizado, às fls. 143/160.
Impetrado o writ perante o plantão judiciário, a desembargadora plantonista, no despacho de fls. 185, declarou-se suspeita por motivo de foro íntimo.
Os autos foram redistribuídos à Vice-Presidente desta e. Corte, na condição de plantonista substituta, que resolveu requisitar as informações da autoridade impetrada, no prazo de 72 (setenta e duas) horas, para subsidiar o exame do pleito liminar (fls. 186/187).
Com o término do plantão, os autos foram redistribuídos à minha relatoria (fls. 192), e vieram-me conclusos na data de ontem (28/09/2015), após o pedido de reconsideração formulado pelo impetrante, às fls. 194/197, instruído com os documentos de fls. 198/203.
Suficientemente relatado, decido.
Registro, de antemão, que, a despeito de não terem sido enviadas as informações, em tempo e modo, a inicial da impetração encontra-se satisfatoriamente instruída, autorizando, destarte, o exame do pedido urgente.
A concessão do pleito liminar, em sede de habeas corpus, exige a demonstração, de plano, da presença dos requisitos fumus boni juris e periculum in mora, além da comprovação, inequívoca, de urgência na cessação da coação ilegal incidente sobre a liberdade do paciente.
No caso vertente, examinando perfunctoriamente os argumentos da impetração, contrapostos aos fundamentos do decisum questionado e às provas documentais carreadas, forçoso concluir que a prisão preventiva é medida que se afigura, a priori, desarrazoada, na linha dos fundamentos adiante delineados.
Extraio da decisão de fls. 143/160 o seguinte fragmento, alusivo ao periculum in libertatis, em que se funda a segregação do ora paciente, in verbis:
[…] As autoridades policiais revelam que João Guilherme de Abreu foi fundamental para a inserção de Youssef no Governo do Estado do Maranhão, este era Secretário da Casa Civil, homem de confiança da Governadora da época, dotado de grande poder e influência junto à administração pública. A partir de um processo administrativo singular, parcelou a dívida do valor de R$113.366.859.84 (cento e treze milhões, trezentos e sessenta e seis mil, oitocentos e cinquenta e nove reais e oitenta e quatro centavos) em favor da empresa de construção civil UTC/CONSTRAN, recebendo como propina a quantia de R$3.000.000.00 (três milhões de reais), das mãos de Youssef, intermediado por MARCÃO. Desta maneira, o modo como o crime foi realizado, torna arriscado a nanutenção dos representados em liberdade, toda a sociedade estaria em grande risco.
Asseveram os delegados de polícia, que João Abreu recebeu de Youssef também uma caixa de vinho com 3 (três) garrafas, cujo o preço de cada unidade varia de R$ 1.000,00(mil reais) a R$3.000,00(três mil reais) , perfazendo o “presente” numa importância de no mínimo R$ 3.000,00(três mil reais), o que por si só, configura ilícitos contra a administração pública.
[…]
Ainda, faz-se necessária a custódia cautelar dos representados levando em conta a natureza da infração perseguida, esta se trata de crime de colarinho branco, cujas provas são de fácil manipulação, de forma que soltos, a instrução criminal e a busca da verdade real ficam comprometidas.
Conclui-se, pois, que no caso em apreço, a custódia preventiva, medida cautelar gravosa de cunho excepcional deve ser decretada não havendo que se falar, aqui, em violação ao princípio da não-culpabilidade, dada extrema a necessidade de flexibilização do postulado constitucional em comento.
Observa-se que o cerne argumentativo da segregação para acautelar a ordem pública centra-se, exclusivamente, na necessidade de se estancar novas práticas delitivas.
Contudo, pude observar, em linha de princípio, que a autoridade judiciária dita coatora não explicitou, concretamente, de que maneira a liberdade do ora paciente colocaria em risco a sociedade, notadamente a probabilidade de reiteração criminosa, pois limitou-se a narrar os fatos tais como descritos na representação, sem contextualizá-los numa probabilidade empírica de recalcitrância delituosa.
Com efeito, é possível inferir, por ora, de acordo com os fundamentos da decisão impugnada, que a gravidade abstrata do crime imputado ao paciente – recebimento de propina no valor de três milhões de reais -, não guarda relação lógica de causa e efeito entre sua suposta prática e o perigo de que novas condutas delitivas deste jaez tornem a ocorrer, o que é corroborado, também, pela constatação de que João Aguiar de Abreu não mais exerce qualquer cargo público no âmbito da Administração Pública Estadual, e ainda, pela inexistência de registros criminais anteriores em seu desfavor.
De outra parte, ainda analisando os termos em que vazada a representação, e consequentemente, o decreto prisional hostilizado, de bom alvitre registrar que a gravidade a do crime, como é de sabença, não constitui, por si só, fator de legitimação da segregação ante tempus, sendo imperiosa a demonstração de fatos concretos que justifiquem a imposição da medida gravosa, face, mesmo, ao princípio constitucional da presunção de inocência, sob pena de a prisão tornar-se mero consectário da imputação. Tal orientação é firme na jurisprudência:
[…] – A privação cautelar da liberdade individual – cuja decretação resulta possível em virtude de expressa cláusula inscrita no próprio texto da Constituição da República (CF, art. 5º, LXI), não conflitando, por isso mesmo, com a presunção constitucional de inocência (CF, art. 5º, LVII) – reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser ordenada, por tal razão, em situações de absoluta e real necessidade. A prisão processual, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe – além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e indício suficiente de autoria) – que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu. Doutrina. Precedentes. A PRISÃO PREVENTIVA – ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR – NÃO PODE SER UTILIZADA COMO INSTRUMENTO DE PUNIÇÃO ANTECIPADA DO INDICIADO OU DO RÉU. – A prisão cautelar não pode – nem deve – ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão cautelar – que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. Precedentes. A PRISÃO CAUTELAR NÃO PODE APOIAR-SE EM JUÍZOS MERAMENTE CONJECTURAIS. – A mera suposição, fundada em simples conjecturas, não pode autorizar a decretação da prisão cautelar de qualquer pessoa. – A decisão que ordena a privação cautelar da liberdade não se legitima quando desacompanhada de fatos concretos que lhe justifiquem a necessidade, não podendo apoiar-se, por isso mesmo, na avaliação puramente subjetiva do magistrado de que a pessoa investigada ou processada, se em liberdade, poderá delinqüir ou interferir na instrução probatória ou evadir-se do distrito da culpa ou, então, prevalecer-se de sua particular condição social, funcional ou econômico-financeira para obstruir, indevidamente, a regular tramitação do processo penal de conhecimento. – Presunções arbitrárias, construídas a partir de juízos meramente conjecturais, porque formuladas à margem do sistema jurídico, não podem prevalecer sobre o princípio da liberdade, cuja precedência constitucional lhe confere posição eminente no domínio do processo penal. PRISÃO CAUTELAR E POSSIBILIDADE DE EVASÃO DO DISTRITO DA CULPA. – A mera possibilidade de evasão do distrito da culpa – seja para evitar a configuração do estado de flagrância, seja, ainda, para questionar a legalidade e/ou a validade da própria decisão de custódia cautelar – não basta, só por si, para justificar a decretação ou a manutenção da medida excepcional de privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu. Precedentes. O CLAMOR PÚBLICO NÃO CONSTITUI FATOR DE LEGITIMAÇÃO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE. – O estado de comoção social e de eventual indignação popular, motivado pela repercussão da prática da infração penal, não pode justificar, só por si, a decretação da prisão cautelar do suposto autor do comportamento delituoso, sob pena de completa e grave aniquilação do postulado fundamental da liberdade. – O clamor público – precisamente por não constituir causa legal de justificação da prisão processual (CPP, art. 312) – não se qualifica como fator de legitimação da privação cautelar da liberdade do indiciado ou do réu. Precedentes. A PRESERVAÇÃO DA CREDIBILIDADE DAS INSTITUIÇÕES NÃO SE QUALIFICA, SÓ POR SI, COMO FUNDAMENTO AUTORIZADOR DA PRISÃO CAUTELAR. – Não se reveste de idoneidade jurídica, para efeito de justificação do ato excepcional da prisão cautelar, a alegação de que essa modalidade de prisão é necessária para resguardar a credibilidade das instituições. INADMISSIBILIDADE DO REFORÇO DE FUNDAMENTAÇÃO, PELAS INSTÂNCIAS SUPERIORES, DO DECRETO DE PRISÃO CAUTELAR. A legalidade da decisão que decreta a prisão cautelar ou que denega liberdade provisória deverá ser aferida em função dos fundamentos que lhe dão suporte, e não em face de eventual reforço advindo de julgamentos emanados das instâncias judiciárias superiores. Precedentes. A motivação há de ser própria, inerente e contemporânea à decisão que decreta (ou que mantém) o ato excepcional de privação cautelar da liberdade, pois a ausência ou a deficiência de fundamentação não podem ser supridas “a posteriori”. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO, NO CASO, DA NECESSIDADE CONCRETA DE DECRETAR-SE A PRISÃO PREVENTIVA DOS PACIENTES. – Sem que se caracterize situação de real necessidade, não se legitima a privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu. Ausentes razões de necessidade, revela-se incabível, ante a sua excepcionalidade, a decretação ou a subsistência da prisão cautelar. A PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA IMPEDE QUE O ESTADO TRATE COMO SE CULPADO FOSSE AQUELE QUE AINDA NÃO SOFREU CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL. – A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) – não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais, que, fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem. Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível – por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) – presumir-lhe a culpabilidade. Ninguém, absolutamente ninguém, pode ser tratado como culpado, qualquer que seja o ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional do estado de inocência, tal como delineado em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes.[2]
Portanto, posso afirmar, por ora, que a finalidade metaprocessual da segregação, in casu, limita-se aos aspectos inerentes à prática delitiva, insuficientes para este fim; ademais, estes mesmos fundamentos não explicitam de que forma novas infrações desta natureza poderiam ocorrer, não estando suficientemente delineado, pois, o risco de recalcitrância delituosa.
A prisão preventiva funda-se, ademais, na conveniência da instrução, enfatizando o magistrado impetrado que nos crimes de colarinho branco as “provas são de fácil manipulação”, o que, concessa venia, apresenta-se, em princípio, juízo meramente especulativo, porque desvinculado de efetiva demonstração, no caso concreto, de como seria possível, mesmo em tese, a manipulação das provas pelo ora paciente.
Portanto, forçoso concluir, por ora, que a segregação preventiva do paciente carece de base empírica idônea, o que não implica, necessariamente, em sua soltura ipso facto, sem algumas condicionantes, questão sobre a qual me detenho adiante.
Cediço que, após a recente reforma operada no CPP, pela Lei nº 12.403/11, a prisão preventiva passou a ser considerada, de acordo com a doutrina, a “extrema ratio da ultima ratio”, em alusão ao que dispõe o art. 282, § 6º, do CPP, segundo o qual:
Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:
I – necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais;
II – adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.
Omissis
§ 6o A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319).
(sem destaques no original).
Assim, atualmente, a necessidade da prisão preventiva deve passar por um filtro de ponderação e análise escalonada, só sendo cabível quando as demais medidas cautelares previstas no art. 319, do CPP, não se mostrarem idôneas. Nesse sentido são as ponderações de Luiz Flávio Gomes:
[…] Com a reforma do CPP que agora estamos comentando, fecha-se o ciclo: restam apenas duas prisões cautelares: temporária e preventiva. Ambas exigem fundamentação concreta do juiz (CPP, art. 283, com nova redação). Todas as demais formas de prisão cautelar foram eliminadas. A prisão cautelar é excepcional. Exige demonstração dessa excepcionalidade (pelo juiz). A prisão cautelar é a extrema ratio da ultima ratio (que é o direito penal). Só pode ser adotada em casos de extrema necessidade e quando incabíveis as medidas cautelares substitutivas ou alternativas (CPP, art. 319; veja ainda 282, § 6º). […][3]
(sem destaques no original).
Conquanto não haja dúvidas sobre a identidade entre os pressupostos para a imposição da segregação preventiva e das medidas cautelares diversas da prisão, i.e., o fumus comissi delicti, há certo dissenso doutrinário no que concerne a essa mesma similitude relativamente aos requisitos autorizadores dos dois mecanismos.
Acerca da matéria, dispõem os arts. 282, 311, 312 e 313, do CPP:
Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
I – necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
II – adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 1o As medidas cautelares poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 2o As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 3o Ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 4o No caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o juiz, de ofício ou mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva (art. 312, parágrafo único). (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 5o O juiz poderá revogar a medida cautelar ou substituí-la quando verificar a falta de motivo para que subsista, bem como voltar a decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 6o A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319). (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
[…]
Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4o). (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
I – nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
II – se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
III – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
IV – (revogado). (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). Parágrafo único. Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).(Sem destaques no original)
A exegese sistemática dos preceitos conduz à seguinte conclusão: as medidas cautelares diversas e a prisão preventiva, em princípio, possuem requisitos essencialmente similares relativos à necessidade da medida, pautadas no periculum in libertatis, sendo que a adequação constitui o parâmetro definidor da natureza da medida cautelar a ser imposta.
Nesse aspecto, é clara a redação do inciso II, do art. 282, do CPP, ao dispor sobre a observância da “adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado”.
A par de tais premissas, a conclusão que chego sobre o tema é a seguinte: a carência de fundamentação do decreto prisional (tal como se apresenta, numa primeira análise, no caso vertente), autoriza a imposição de medidas alternativas à prisão, desde que os respectivos requisitos, relativos à necessidade, estejam presentes.
Noutros termos, o constrangimento ilegal por motivação deficitária da segregação cautelar não é um caminho unívoco, que conduz apenas à soltura, pois o art. 321, do CPP dispõe, expressamente, que “ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código e observados os critérios constantes do art. 282, deste Código” (sem grifos no texto original), convindo anotar que, tratando-se de medidas regidas pela cláusula rebus sic stantibus, marcadas, portanto, pela provisoriedade, podem elas ser revistas a qualquer tempo, sobretudo no que condiz à necessidade, consoante dicção do § 5º, art. 282, do CPP[4].
A par dessas considerações, e ainda, dos predicativos favoráveis do paciente (primariedade, residência fixa, ocupação lícita etc.), entendo que o caso versado nos autos recomenda, ao menos nesta sede prefacial, a substituição da prisão preventiva por medidas cautelares diversas da prisão, por ser, in casu sub examine, o que melhor se adéqua aos vetores da proporcionalidade.
De relevo consignar que o contexto fático narrado nos presentes autos surgiu como um dos vários desdobramentos da operação “Lava-jato”, consoante já citamos, em que se observa, além das prisões largamente noticiadas pela mídia, a substituição de tais medidas extremas por cautelares diversas, concedidas a vários réus, tanto em primeira instância, na Justiça Federal de Curitiba, como no âmbito do Supremo Tribunal Federal[5]. Portanto, a medida que ora se propõe, nesta sede preambular, não se distancia daquilo que vem sendo decidido a respeito dos fatos relacionados à operação “Lava-jato”, em relação a alguns acusados.
No caso sob testilha, sumariando cognitivamente os autos, vejo que o paciente, consoante ele mesmo afirma em seus depoimentos, exerce atividade empresarial[6] e, ao que tudo indica, viaja a negócios com certa regularidade.
Tal constatação, embora não concretize, aprioristicamente, intento inequívoco de se furtar à aplicação da lei penal ou de embaraçar a instrução, pode eventualmente trazer tais consequências, caso não haja certos condicionamentos ao exercício do direito ambulatorial do paciente.
Ademais, sob o ângulo do acautelamento do tecido social, embora inexista, em princípio, probabilidade concreta de novas práticas delitivas semelhantes, conforme consignamos alhures, tal risco revela-se latente, diante de perspectivas (ainda que remotas) de o ora paciente tornar a ocupar outro cargo no âmbito do Poder Público, convindo advertir, por oportuno, que a atual conjuntura política, por si só, não inibe tal possibilidade, dada a magnitude da influência do grupo político que pertence o ora paciente, que, por certo, ultrapassa os limites territoriais do Estado do Maranhão.
Nessa senda, entendo que a conveniência da instrução, a garantia da aplicação da lei penal e o resguardo da ordem pública exigem o devido acautelamento, mas por medidas menos gravosas, previstas no art. 319, do CPP, considerando as peculiaridades do caso.
Assim, de rigor a substituição da segregação preventiva por medidas cautelares diversas da prisão, previstas no art. 319, do CPP.
Com essas considerações, defiro a liminar vindicada, para substituir a prisão preventiva por medidas cautelares diversas, a serem impostas ao paciente João Guilherme de Abreu, brasileiro, casado, advogado, OAB nº 749/MA, CPF nº 011.971.693-34, residente e domiciliado na Av. dos Holandeses, nº 2000, Condomínio Yaguá, Ap. 502, Ponta d”Areia, São Luís, consistentes em:
I – comparecimento mensal em juízo, para informar e justificar atividades, com proibição de mudar de endereço e de se ausentar da comarca sem prévia autorização judicial;
II – proibição de manter contato com os demais investigados, indiciados e réus na operação “Lava-jato”, por qualquer meio;
III – proibição de deixar o país, devendo entregar seu passaporte em juízo, em até 48 (quarenta e oito) horas;
IV – proibição de ocupar cargo público em todo o território nacional, na estrutura dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, em âmbito Federal, Estadual e municipal; e
V – monitoração por meio da utilização de tornozeleira eletrônica, para viabilizar a fiscalização do cumprimento das medidas ora impostas, de forma mais fidedigna.
Advirta-se que a implementação dessas medidas far-se-á sem prejuízo de outras que venham a se tornar necessárias no curso da persecução criminal, e seu eventual descumprimento injustificado ensejará o restabelecimento da ordem de prisão (art. 282, § 4°, do Código de Processo Penal).
Para efetivo cumprimento, a presente decisão tem força de alvará judicial, devendo o paciente ser posto in continenti em liberdade, se por outro motivo não deva permanecer preso, e tomará compromisso por termo nos autos, perante o juízo de primeira instância.
Reitere-se o pedido de informações, e após sua juntada, encaminhem-se os autos à Procuradoria Geral de Justiça para emissão de parecer, no prazo legal.
Intimem-se.
São Luís, 29 de setembro de 2015.
Des. José Luiz Oliveira de Almeida-Relator
[1]Além de ter acolhido pedido de busca e apreensão domiciliar.
[2]HC 95290, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 01/03/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-150 DIVULG 31-07-2012 PUBLIC 01-08-2012.
[3]GOMES, Luiz Flávio. MARQUES (coord.), Ivan Luís. Prisão e Medidas Cautelares.Comentários à Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011. RT, 2011, p. 25.
[4]O juiz poderá revogar a medida cautelar ou substituí-la quando verificar a falta de motivo para que subsista, bem como voltar a decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.
[5]Cito como exemplo o Habeas Corpus 127.186/PR, de relatoria do Min. Teori Zavascki, 2ª T., que substituiu a prisão preventiva de Ricardo Ribeiro Pessoa, da UTC, por medidas cautelares diversas da prisão, em julgamento realizado em 28/04/2015.
[6]Disse ser sócio de uma empresa que controla um Shopping Center nesta Capital.
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