Quais as lembranças que você guardará na memória do ano que agora termina? Muitas pessoas com quem tenho conversado me dizem que 2020 é um ano que devemos esquecer. Outras afirmam que as adversidades e tragédias ainda em curso são mais do que suficientes para o período. Uns tantos vislumbram no próximo ano a perspectiva de transformação e dias melhores.
É natural nossa vontade de esquecer as vivências marcadas pela angústia, os momentos que nos causam dor, as perdas indesejadas e inevitáveis que caracterizam nossa existência. Somos seres constituídos para a busca da felicidade. Embora nem sempre saibamos o que de fato ela signifique e o que em verdade devemos fazer para um dia alcançá-la, se isso realmente for possível. Portanto, em múltiplas circunstâncias, nem sempre explicáveis de forma racional, esquecer é o que nos resta fazer. Até para que possamos manter a lucidez.
Às vezes precisamos deixar muitas coisas pelo caminho. Aprendi isso da primeira vez que fui subir uma montanha. Alegre com a possibilidade de fazer algo que sempre tive vontade, peguei a maior mochila que tinha e nela coloquei várias coisas que para mim pareciam essenciais e indispensáveis ao alcance da meta. Em minha visão estava sendo previdente e me antecipando de todas as formas aos eventuais problemas que a escalada pudesse me trazer.
Montanhas eram e continuam sendo para mim, ao mesmo tempo, um fascínio e um mistério. Naquela ocasião, precisava estar preparado da melhor forma possível para enfrentar os desafios da escalada. Parte significativa desse preparo está ligada aos equipamentos que levamos para tornar a tarefa mais segura e fácil. Minha mochila estava cheia do que, em minha inexperiente percepção, eu julgava precisar.
Qual não foi minha surpresa ao chegar à base da montanha? Na reunião inicial para as orientações sobre a atividade o guia me perguntou se vinha participar de uma escalada ou de um acampamento para vários dias. Disse-me que se eu realmente quisesse subir a montanha, precisava retirar vários itens de minha mochila. Ela estava muito pesada. E, à proporção que a altitude aumentasse, a sensação de peso se ampliaria, ao ponto de não me permitir chegar ao cume.
E o que devemos deixar pelo caminho? O que é imperativo retirar da “bagagem” que carregamos ao longo da vida? Podemos começar por tudo que nos impede de sermos plenos em todas as dimensões da nossa humanidade; tudo que compromete nossa capacidade de lutar por dignidade e justiça para todos; tudo que envenena nossos corações e mentes com o medo, a mentira, o ódio e o rancor; tudo que representa obstáculo à possiblidade de concretização da harmonia, da paz e do amor na humanidade. Cada um que faça sua própria avaliação dos “itens” aos quais pretende renunciar.
Se esquecer e deixar o que não é essencial para trás é importante, o que lembramos talvez seja a parte mais significativa do que somos como indivíduos. O que recordamos, muitas vezes com especial afeto, de certa forma nos define. É parte fundamental de nossa identidade e dos valores que imprimem em cada gesto cotidiano um sutil e inelutável toque de nobreza.
Por isso, disse a todos os meus interlocutores que me afirmaram que 2020 é um ano que devemos esquecer, que simplesmente, embora em meio ao inesperado, ao inusitado, ao obsceno, à tragédia e a tantas outras coisas indesejadas que foram nossas companheiras involuntárias ao longo desse ano, há muitas coisas que a minha memória não deseja e não se permitirá jamais esquecer.
Não vou esquecer que muitas vidas foram perdidas em meio à atual pandemia. Aos familiares e amigos que agora processam a dor do luto, minha compaixão e solidariedade. Não quero e não vou esquecer a bravura e a altivez dos profissionais da área da saúde que dedicam seu trabalho e suas vidas ao cuidado e à salvação de outras vidas em meio a essa tragédia ainda em andamento. Não consigo esquecer a criatividade, o empenho e o talento de todos os cientistas e pesquisadores que trabalham no desenvolvimento de vacinas eficazes, esperança de retorno a uma provável normalidade, ainda que marcada por muitas modificações com as quais teremos que conviver. Não é possível esquecer os gestos de alteridade e de apoio que amenizaram o sofrimento de milhares de seres humanos em todo o mundo. Eles demonstram que ainda é possível construirmos uma realidade mais equitativa, harmoniosa e fraterna.
Quando falamos do delicado tecido da existência, esquecer e lembrar são dimensões indissociáveis, complementares e que não devem ser entendidas pelas lentes da superficialidade que marca a maioria de nossas percepções. A relação que estabelecemos com o que esquecemos e o que somos capazes de para sempre lembrar pode significar a diferença entre o que conseguimos concretizar e o que permanecerá como desejo e projeto irrealizado. Pode se traduzir na perpetuação de atrocidades e indignidades que gradativamente têm o potencial de tornar a existência humana banal e inviável ou na consolidação das transformações indispensáveis à nossa sobrevivência como espécie e à preservação do planeta.
Daqui a um tempo, muito do que aconteceu em 2020 eu não terei nenhum prazer em lembrar. Mas não me permitirei esquecer que esse ano e suas adversidades me ensinaram que vale a pena lutar por tudo que resgata em nós a dignidade de sermos singularmente humanos. Desejo a todos que 2021 seja pleno de saúde, paz e felicidade.
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*Alexandre Antonio Vieira Vale, auditor de controle externo do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão. Especialista em Administração Pública.
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